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25 de março de 2025

Voltando ao Mara Hope

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Retornar ao livro já escrito traz reflexões. Não é à toa que muitos escritores jamais releem suas obras, principalmente o livro de estreia. O estranhamento não se refere apenas à escrita, mas ao quanto nos modificamos com os acontecimentos no decorrer da vida.

Ao reler a carta ao Mara Hope, um dos textos mais comentados do meu livro Cidades Invisíveis, percebi algumas mudanças importantes não apenas em mim, mas na própria embarcação que completou esse mês quatro décadas encalhado na praia de Iracema.

Em outubro de 2020, quando escrevi a carta, o Mara Hope já era um navio bem deteriorado, marrom de ferrugem e condenado para mergulhos e visitas. De lá para cá, o vi de pertinho duas vezes.

Na primeira vez, achei semelhante à vez da carta, embora estivesse um pouco distraída porque meus filhos estavam comigo. Nessa tarde, eles estavam contrariados e não lembro bem o motivo.

Da segunda vez, o Mara Hope já havia desabado em parte, se tornando uma rampa para o mar. Nessa visita, não senti grandes emoções ao avistá-lo. Na ida, estava ansiosa pelo primeiro banho em alto mar e, na volta, atordoada pela angústia de não sentir os pés no chão e também não saber nadar, mesmo com colete e a ajuda de flutuadores. Preciso sentir onde estou pisando, inclusive na vida.

Continuo olhando com carinho, de longe, meu amor Mara Hope. Vejo meu querido navio absolutamente todos os dias no caminho do trabalho e quando vou no Passeio Público para desanuviar, assim como nas fotos de pessoas queridas.

Acredito que ele me presenteou com a capacidade de sentir amor novamente. Não apenas romântico, mas por mim. Eu temia atravessar o portal dos quarenta anos. Achava que seria o começo do fim.

No tempo da carta, eu me sentia enferrujada. Parecia que o tempo de sentir o gosto da vida tinha passado.

Os últimos cinco anos não mudaram meus quilos extras, muito menos a capacidade de meus pés incharem quando fico na mesma posição por muito tempo. Mesmo me exercitando e enxergando a vida diferente, sei que isso não vai mudar da noite para o dia.

Essa demora não me impede de prosseguir porque aprendi o poder dos pequenos passos. E o amor por mim tem florescido. Não um amor de nariz empinado e arrogância, mas de cuidar da minha casa, que é meu corpo. Um corpo de mulher cheio de fragilidades e que envelhece, independente do que eu faça. Mas se é para envelhecer, que seja com saúde e priorizando o que me faz feliz.

Hoje, não temo mais tanto a opinião dos outros e nem retirar minhas âncoras de relações que venham a me diminuir. Foi um aprendizado difícil. Continua sendo.

O velho pode ser belo, mas para permanecer na paisagem, precisa de uma rotina de cuidados. Iniciei essa ação. Já o Mara Hope, acredito que deve se deteriorar até se desfazer em pedacinhos, assim como os outros muitos naufrágios que estão na costa de Fortaleza.

Cada um com seu destino. Minha sorte é que eu posso mudar alguma coisa e prolongar minha estadia, nem que seja com hábitos melhores. Já ele, é um ser inanimado, uma sucata, mesmo querido e fazendo parte da história das pessoas, depende inteiramente do clima e das pessoas. Nós também temos uma certa dependência, mas conosco é diferente. Quando ficamos fortes por dentro, conseguimos construir um caminho mais leve. É nessa navegação que eu prossigo.

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