Priscila Baima
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Obstetra no Rio de Janeiro. Pastor evangélico em Fortaleza. Tio, avô, pai, primo, marido, amigo, padrasto, professor de piano. A lista que, inicialmente, revela homens em diferentes posições sociais na vida de uma mulher traz em comum um alerta vermelho na vida de milhões de mulheres no mundo: o estupro contra mulheres. No Brasil, os números são altos e proporcionalmente preocupantes: o país registrou 56.098 estupros de mulheres ao longo de 2021, de acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Especialistas atribuem casos de estupro não ao desejo sexual do homem, mas sim à hierarquização de gênero e a relação de poder sobre a mulher. Duas mulheres ouvidas pelo OPINIÃO CE foram vítimas de estupro ao longo da vida, ambas com a violência marcada já na infância. O fator em comum: o medo e silenciadas por serem mulheres. Desde o começo.
A A.S é universitária e trabalha dando aulas de reforço para crianças. Ela sofreu um estupro aos 6 anos de idade pelo tio. “Sofri abusos sexuais por parte do marido de minha tia. Eram toques. Sempre me incomodava, mas eu não sabia processar pela pouca idade, no entanto, eu sabia que de alguma forma eu não poderia falar. Só agora eu entendo a origem disso. No meu caso particular, a didática do medo foi a raiz do meu silêncio”.
Estudiosa da teoria feminista, atualmente, A.S entende que é comum a muitas crianças, principalmente ‘meninas feias (malcomportadas)’, a internalização da ideia que qualquer coisa que se faça contra terá uma reação violenta e a menina será humilhada, porque, “como a Psicóloga Leiliane Rocha sempre fala: agressões físicas acostumam a criança ao abuso sexual porque faz ela acreditar que não tem direito sobre seu próprio corpo e que não pode desacatar a autoridade que faz isso, visto que é dito ser para ‘educar’”, pontua.
CORAGEM PARA MUDAR A HISTÓRIA
Logo após as tentativas de suicídio por causa disso, a universitária decidiu denunciar ao Ministério Público, que só depois de dois anos foi na casa procurando o suspeito e, só assim, a família veio a saber do caso. “Meu pai disse que eu acabaria com a vida do cara, pelo que fariam na cadeia com ele, como se o que eu sofri não tivesse sido nada. E, então, entendi que naquela época ele foi defender o acusado pelo profundo sentimento de cumplicidade entre os machos, e não por ‘desconhecer meu caso’, porque quando o soube, ignorou minhas dores.
A.S atribui isso ao que ela denomina como projeto contínuo de colonização e hierarquização do mundo. “Os corpos femininos foram os primeiros humanos a serem colonizados. E toda guerra envolve estupro, porque, como a Natacha Orestes fala, o passo para colonizar uma terra é colonizar os úteros dela, mesmo que sejam útero infantis. O meu abusador é herdeiro direto, mesmo que da ala pobre, de duas famílias colonizadoras do Ceará e responsável pela extinção de alguns povos”, acrescenta a vítima do tio.
Para a especialista e doutoranda e Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora de feminismos e violências de gênero, Marina Solon, o estupro tem mais a ver com poder e dominação do que com sexo.
“O crime não ocorre porque se procura prazer a todo custo, mas porque se anseia demarcar uma dominação, um controle. A raiz disso é a sociedade patriarcal, que se estrutura colocando os homens no centro, com poderio e autoridade desmedidos, o que faz nascer a desigualdade entre os gêneros. É esse desbalanço de poder entre homens e mulheres que autoriza e naturaliza a dominação das mulheres pelos homens, fazendo nascer episódios de violência, como são os casos de estupro”, explica a pesquisadora.
Em relação ao caso recente, divulgado na última segunda-feira (11), envolvendo o estupro de uma mulher em procedimento de cesárea, crime cometido pelo médico Giovanni Quintella Bezerra, preso em flagrante no Rio de Janeiro, Solon acredita que um dos mecanismos imediatos para proteção das mulheres em situações que envolvam a saúde ou até mesmo um parto, se faz necessário “criar mecanismos para acessar o que deveria ser um ambiente de cuidado. Um caminho possível é optar por equipes formadas por mulheres, contratar profissionais de assistência de confiança (como é o caso da doula em partos) e sempre levar acompanhantes em situações de maior exposição e vulnerabilidade. ”
MULHER DÓCIL

Outra mulher ouvida pelo OPINIÃO CE também passou por situações de estupro na vida. Dois casos na infância e uma na fase adulta. Nessa fase, S. A., design de moda, fez parte por muitos anos de uma cultura cristã ortodoxa na família.
S.A. era casada com um homem que a abusou, afirmando que era dever da sua então mulher servi-lo sexualmente. “Eu venho de um contexto familiar cristão bem ortodoxo, que a mulher é para casar e servir ao marido. Esse discurso era bem sem filtro: durante alguns discursos, líderes religiosos diziam que a mulher tem que servir ao marido e o marido tem que servir a mulher e isso também em relação ao sexo. E é onde entra a questão de um estupro legalizado, digamos assim. Nesse contexto, eu já era casada e, em um determinado momento em que eu não queria, ele disse que eu tinha que fazer porque era minha obrigação e foi quando aconteceu. De fato, eu não queria. Em dado momento, eu nem oferecia mais resistência”, comenta a design.
De acordo com S.A., tudo isso é consequência de uma docilização que a sociedade impõe para a mulher. “É a cultura de que a vida sexual da mulher não existe, que deve ser ignorada. O discurso, especialmente religioso que propõe a submissão da mulher e esse pertencimento do corpo de alguém a uma outra pessoa, é extremamente violento. Basicamente, você está à mercê numa situação dessa. É um reflexo de uma sociedade que não permite que sejamos pertencentes dos nossos corpos, dos nossos desejos. É como se a gente não tivesse direito e nem acesso a eles”, salienta.
ESTUPRO DE ACORDO COM A LEI
Em 2009, a Lei nº 12.015/09 passou a definir, mediante seu artigo 213, o crime de estupro como: “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena: reclusão de 6 a 10 anos. Parágrafo 10: se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 a 12 anos. Parágrafo 20: se da conduta resulta morte. Pena – reclusão, de 12 a 30 anos.”
Considerado crime hediondo, pois é classificado como um dos crimes mais violentos, o estupro não mais se restringe à conjunção carnal, ou seja, ao ato sexual sem consentimento. O antigo texto da Lei definia o estupro como constranger uma mulher à conjunção carnal, ou seja, estava pré-determinado que apenas as mulheres eram vítimas desse crime, o que todos sabemos que não é verdade.
Além disso, em alguns trechos do novo texto em vigor desde 2009, a palavra “violência” foi substituída pela palavra “conduta”, o que amplia a aplicação da lei. Portanto, é considerado crime de estupro a conduta imprópria de uma pessoa em relação à outra, independentemente de seu sexo, em que a pessoa agredida seja constrangida, mesmo sem a ocorrência do ato sexual, o que configura atentado ao pudor, de acordo com a segunda parte do artigo 213.
SISTEMA PENAL AINDA FALHO
O problema mais grave encontrado pelas vítimas de estupro é a subjetividade do dolo, pois esta está erroneamente atrelada à interpretação do agente que pune, ou seja, da polícia. Os acontecimentos atuais deixam claro que a mulher ainda é vista como “causadora” do crime, o que inibe outras vítimas de denunciarem seus agressores.
Para a advogada, professora e coordenadora da procuradoria especial da mulher da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), Raquel Andrade, a prática do estupro não é só uma prática criminal, mas também é um reflexo da construção masculinidade historicamente no machismo estrutural e na reprodução de práticas patriarcais no Brasil.
“Precisamos considerar a hierarquia de gênero, em que a existência masculina sempre teve um valor maior que a existência feminina é que motiva a ideia de mulheres serem consideradas uma posse e um objeto. Quem estupra está exercendo uma relação de poder”.
Em relação às leis brasileiras vigentes, Andrade avalia que ainda há muito o que avançar porque o Direito brasileiro sempre reproduziu elementos patriarcais. “O fato de que nós mulheres conquistamos muito tardiamente direitos básicos da vida civil, por exemplo, que os homens tinham já demonstra que houve uma segregação de gênero no ordenamento jurídico brasileiro e isso interfere em toda a prática normativa, de aplicação, de interpretação. Isso hierarquiza os papéis de gênero no tocante à previsão das condutas pela Lei”.
Ainda segundo a advogada, é necessário implementar instrumentos e medidas de correção e reparação histórica de direito das mulheres. Além disso, é preciso rever a educação das crianças. “A educação de gênero, a inserção de iniciativas difusas de desconstrução desse papel de gênero, da masculinidade que coloca o homem como abusador e violador nato, que subjuga as mulheres em todas as esferas. Acho que precisamos adotar medidas não só imediatas, mas permanentes e enraizadas”.
PAPEL DO HOMEM
Outro fator importante levantado por Raquel é a reflexão sobre o papel dos homens no enfrentamento à violência. “Na procuradoria, por exemplo, implementamos núcleos reflexivos para homens, com psicólogos, que criem esses espaços em instituições públicas e privadas. Tudo começa com compreensão do problema, reflexão, aceitação de que todas e todos estamos dentro de uma sociedade machistas e, portanto, reproduzimos práticas machistas.”
Em relação ao caso do estupro feito por um médico obstetra, Raquel Andrade enfatiza e depois questiona:
“Médicos homens que lidam com saúde da mulher têm acesso ao corpo feminino de forma mais direta, principalmente o acesso às genitálias das mulheres. É preciso de maneira urgente, para ontem, trabalhar a reflexão sobre as relações de poder. Por que um corpo vulnerável de uma mulher, seja na hora de fazer uma consulta ginecológica ou seja na hora de parir, desperta a necessidade de violação daquele corpo? A chave é analisar as relações de poder, de um gênero sobre o outro”, finaliza.