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22 de abril de 2025

Técnica de fraturar dedos de presos é usada no Ceará e outros 4 estados brasileiros

A presidenta do CEPCT, Marina Araújo, confirma que quebrar dedos dos presos não se trata de ocorrência pontual
Em relatório sobre missão ao estado do Ceará, imagem mostra mãos de diferentes presos com indícios de traumatismo nos dedos. Foto: Acervo do MNPCT (2019)

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Uma técnica de tortura em que os dedos das mãos de pessoas encarceradas são fraturados já foi identificada no Ceará e outros quatro estados brasileiros pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Segundo o órgão, a prática foi encontrada a partir da atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Coordenadora do MNPCT, a advogada Carolina Barreto Lemos revelou que o órgão começou a perceber a disseminação dessas ocorrências em locais de incursões realizadas pela FTIP, como Rio Grande do Norte e Ceará.

Há registros, ainda, de presos com dedos quebrados em Roraima, Amazonas e Pará. As informações são da Agência Brasil.

“Por óbvio, isso é uma forma completamente ilícita, não é algo que possa se justificar a partir de nenhum viés, não há nenhuma justificativa legal, isso se configura muito claramente enquanto um crime. Um crime de tortura porque é uma forma de castigar, de impor um castigo ilegítimo, injustificado, para além do castigo que é a própria privação de liberdade”, avalia a advogada. Acrescenta que a prática de se fraturar dedos está completamente fora dos padrões de uso proporcional da força.

CEARÁ

Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP) informou que considera as acusações infundadas e que repudia a tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará. Segundo a SAP, o sistema recebe visitas regulares de instituições fiscalizadoras, como Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, além de entidades de controle social, e mantém uma Ouvidoria própria, vinculada à Ouvidoria do Governo estadual.

“O sistema prisional do Ceará virou um modelo de referência nacional em vários aspectos, com destaque para a ressocialização e a segurança física e emocional da sua população privada de liberdade. Entre os anos de 2009 até 2019, os presídios cearenses tiveram 210 presos assassinados. Desde que a SAP foi criada em 2019, esse número caiu para duas vidas perdidas de forma violenta, justamente nos primeiros meses de criação da pasta quando houve reação do crime perante a reorganização do sistema penitenciário cearense e assim permanece até hoje”, diz a nota.

Segundo a SAP, o Estado realizou, nos últimos quatro anos, em parceria com a Defensoria Pública do Ceará, mais de 125 mil revisões processuais entre os internos do sistema penitenciário do estado, o que contribuiu para a redução de 30 para 21 mil pessoas em regime fechado. A Secretaria da Administração Penitenciária diz que foi a maior redução realizada no país.

Neste mês, após pressão da opinião pública e da sociedade civil organizada que acompanha o tema, o governador Elmano de Freitas (PT) anunciou a criação de um fórum permanente de avaliação e acompanhamento do sistema penitenciário. Nesta semana, quatro entidades apresentaram ao Governo do Estado uma série de propostas para coibir casos de tortura em presídios do Ceará. As sugestões vão além do uso de câmeras nos uniformes dos policiais penais. Entre as propostas apresentadas estão o fortalecimento de órgãos de fiscalização do sistema prisional e garantia das “condições dignas” para quem trabalha no sistema prisional.

As sugestões foram formuladas pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Ceará, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDDH), a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (CDHC) e o Conselho Penitenciário do Estado do Ceará (Copen).

No fim de junho, a Corregedoria de Presídios da Comarca de Fortaleza chegou a determinar o afastamento provisório, pelo prazo de 90 dias, da atual direção da Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva (UP-IV). A medida foi motivada após denúncia de violência e maus-tratos praticados contra internos com o objetivo de que se preserve a integridade física e psicológica dos presos e se resguarde a coleta de provas, evitando eventual interferência dos possíveis autores na apuração dos fatos.

BRASIL

Liderada por policiais penais federais, que coordenam os policiais penais mobilizados, a FTIP foi criada para ser empregada na resolução de crises, motins e rebeliões, no controle de distúrbios e no reestabelecimento da ordem e da disciplina nos sistemas prisionais. A força-tarefa foi empregada pela primeira vez no país em 2017, na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, diante de uma crise que resultou na morte de 26 presos.

A advogada Carolina Barreto Lemos lembra da declaração de Mauro Albuquerque, atual secretário de Administração Penitenciária do Estado do Ceará, apontado por ela como um dos mentores da técnica de quebrar dedos. Ele defendeu a ação durante audiência pública na Câmara Municipal de Natal (RN), em 12 de setembro de 2017, após denúncias de maus-tratos contra presidiários no Estado, quando era secretário estadual de Justiça e da Cidadania, conforme consta em relatório produzido pelo MNPCT, em 2019.

Mauro Albuquerque afirmou, durante a audiência, que “quando se bate nos dedos – falo isso não é porque não deixa marca nos dedos não… porque deixa marca, é para ele não ter mais força para pegar uma faca e empurrar num agente (policial), é para não ter mais força para jogar pedra”, aponta o relatório. A FTIC não só fazia as intervenções nos momentos específicos de crises, mas realizou também treinamento de policiais penais nos estados, o que levou a uma repetição das ocorrências para além da atuação da própria força, ressalta a coordenadora do MNPCT.

“E, com isso, dissemina-se as técnicas para além da sua atuação, a própria técnica de quebrar os dedos. Tanto é que, no fim do ano passado, em novembro, o órgão vai ao Rio Grande do Norte, que era o local que teve treinamento pela FTIP, apesar de a força não estar lá mais naquele momento, e identifica novamente (essa técnica) sendo usada”, relatou Carolina Lemos.

TORTURA

Segundo a coordenadora do MNPCT, o uso dessa forma de tortura ainda não foi superado, inclusive porque a força-tarefa continua existindo e atuando, no entanto, com outro nome. “A equipe não deixou de existir, ela mudou de nome, atualmente está sendo chamada de Focopen, que é Força de Cooperação Penitenciária. Se não me engano, mas completamente ela continua atuando, e, até onde a gente saiba, partindo dos mesmos os parâmetros anteriores”, continua Carolina Lemos.

A presidenta do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Ceará, Marina Araújo, confirmou, em entrevista à Agência Brasil, que a ação de fraturar os dedos das pessoas no cárcere não se trata de ocorrência pontual no Estado e que a prática de tortura nas unidades prisionais cearenses é um fato identificado há alguns anos como padrão sistemático. “Tanto quebra-dedos como posições de tortura são identificados, inclusive, como práticas que estão institucionalizadas, como sanções disciplinares que as pessoas internas hoje têm sido submetidas pela Administração Penitenciária a cumprir como procedimento disciplinar”, afirma Marina Araújo.

Em ofício enviado ao Governo do estado do Ceará, a CEPCT, junto a outras entidades contra a tortura, denuncia 33 casos de tortura no período de um ano (julho de 2022 a junho de 2023), recebidos pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

“O contexto de tortura foi identificado por diversos órgãos locais e familiares, tem sido denunciado exaustivamente, cotidianamente, e esse cenário já foi documentado e comprovado em diversos relatórios de órgãos inclusive nacionais. Como exemplo, a gente tem um relatório de 2019 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura que identificou uma série de práticas de tortura e tratamento cruel dentro das unidades prisionais. Este mesmo cenário foi constatado pelo relatório de inspeções do Conselho Nacional de Justiça no ano de 2021”, revela Marina Araújo.

As denúncias do ofício incluem ainda 26 mortes de internos nas unidades prisionais cearenses entre 2019 e 2021, com base em dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); e cinco suicídios de agentes penais cearenses somente em 2021, conforme aponta o relatório da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Os dados do CNJ, que apontaram as 26 mortes no sistema prisional do Estado, são divergentes do que foi divulgado pelo Governo, o que demonstra problemas em relação à transparência, segundo Marina Araújo.

“Foram identificadas pela Secretaria da Segurança Pública somente quatro mortes no mesmo período analisado pelo CNJ. Então, tem um ponto que é sobre a transparência de dados e sobre acesso à informação de casos de tortura e de mortes nas unidades prisionais que precisa também ser pontuado”, alerta.

COMBATE

A coordenadora do MNPCT, Carolina Lemos, salienta que técnicas de tortura, de modo geral, são muito disseminadas pelo Brasil e que estão estruturalmente presentes na atuação das forças dentro do sistema prisional. “Elas se repetem, ainda que não tenha tido um intercâmbio direto entre os estados. Então, às vezes o que a gente vê em Minas Gerais vai ter algo parecido com o Amazonas ou Paraná, porque tem uma disseminação dessas técnicas históricas”, analisa. Em relação ao combate e prevenção de tortura no País, Carolina Lemos aponta que é necessário um controle externo para atingir o objetivo. “É fundamental um trabalho sistemático e qualificado de prevenção dessas práticas por meio da ação fiscalizatória, que é você fazer as visitas não anunciadas, chegar de surpresa nas unidades para ver o que está acontecendo de fato”, salienta.

Além do controle por meio das Defensorias Públicas e dos Ministérios Públicos, ela destaca a importância dos Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura estaduais, além do nacional, que tem a função exclusiva de fazer visitas regulares, produzir relatórios e recomendações para as autoridades. Segundo a advogada, a ideia dos mecanismos é que as visitas regulares a espaços de privação de liberdade contribuam para uma mudança na medida em que esses espaços que estão longe dos olhos do público vão ser sujeitos a um olhar externo regular.

GOVERNO FEDERAL

A Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) informou, em nota à Agência Brasil, que apura as denúncias de tortura recebidas por meio da Corregedoria-Geral, que tem como função principal apurar irregularidades, abusos ou conduta indevida por parte dos servidores, além de implementar as diretrizes para as ações de correição. “Sobre o procedimento aberto à época do recebimento das denúncias de tortura, restam ainda sem confirmação de tortura. Em relação aos servidores mobilizados (servidores estaduais), foram instaurados PACs – Procedimento de Apuração de Conduta, que coleta informações preliminares e o processo instruído é enviado ao estado para julgamento. Não havendo indícios de tortura”, disse a pasta em nota.

Segundo a secretaria, em 2023, a FTIP passou por uma reformulação no seu escopo de atuação passando a ser denominada Força de Cooperação Penitenciária (Focopen). “O novo modelo reflete a necessidade de reforço aos entes federados em quatro eixos: apoio à gestão prisional, gerenciamento de crises no ambiente prisional, treinamento e capacitação dos servidores, atendimento e classificação dos presos”, informou. A Senappen informou que realiza ações de escuta com objetivo de realizar diagnósticos situacionais e identificação de demandas, na perspectiva das pessoas privadas de liberdade e dos servidores da execução penal, a fim de qualificar os serviços penais.

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