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17 de fevereiro de 2025

Sujeito de sorte: ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro

Os governos têm que investir na saúde pública, melhorar a remuneração desses trabalhadores e dar todo amparo psicológico que precisam

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Na antevéspera do Natal, dia 23, eu fui comemorar o início da produção de um disco novo com os amigos parceiros, no aconchegante e cultural bar-restaurante Embaixada de Cachaça. Aquela alegre confraternização da boemia doméstica, sem muita bebida, mas muita conversa, como sempre, acontece nas segundas-feiras. A alegria durou pouco. No dia seguinte, eu amanheci provocando sangue. Após perder muito sangue, perdi os sentidos. Sujeito de sorte sou eu, que fui reanimado por meu filho, que é da área da saúde. Como é bom ter uma família presente e que dá apoio incondicional. No hospital, mais outro desfalecimento. No mesmo dia 25, fui para a Unidade de Terapia Intensiva, UTI, onde permaneci até o dia 30. Exames de sangue duas vezes ao dia, tomografia do crânio e do abdômen, endoscopia e colonoscopia, e tudo o que foi necessário, e nada da turma entender em qual parte do corpo e o que teria motivado tamanho sangramento. Pensando bem, ano passado não foi bom mesmo.

No dia 11 de março, eu caí no banheiro, bati com a cabeça e fiquei desacordado. O chuveiro ligado e eu ali, com água e sangue ao redor do corpo, sem consciência e nenhum movimento no corpo. Como dizem os ingleses: “Someone up there likes me”. (Alguém lá de cima gosta de mim). Depois de um bom tempo, abri os olhos e fui recompondo os sentidos e os movimentos das mãos, braços e pernas. Lentamente, levantei-me, peguei o celular e pedi ajuda. E lá vai hospital, exames e tudo mais. Para quem só levava pai, mãe e parentes e nunca havia sido hospitalizado, ter duas ocorrências em um ano, com direito a 5 dias de UTI, sem ver a luz do sol, foi uma experiência medonha e de muita tristeza. Entre sábado e domingo, cinco pessoas morreram e quatro foram entubadas.

A cada procedimento de entubação ou de tentar salvar os que estavam à beira da morte, os poucos familiares presentes eram retirados do ambiente, e depois só se ouvia choro e orações. Fiquei observando o trabalho das enfermeiras mais velhas e jovens de vinte e poucos anos, técnicas em enfermagem, fisioterapeutas e médicos plantonistas que se entregam e passam por tantas tensões, sofrimentos e pressões psicológicas quase todos os dias, é desumano. Os governos têm que investir na saúde pública, melhorar a remuneração desses trabalhadores e dar todo amparo psicológico que precisam. Meu Deus! Imagina a grande maioria da população que não tem como pagar um simples plano de saúde qualquer. Fica a dica para o novo prefeito da cidade de Fortaleza, Evandro Leitão. Diante de tantas mortes e entubações daqueles seres humanos, e eu ali, inerte, sem poder fazer nada. Naquela sinistra tarde de domingo, pensei na arte como solução para amenizar tamanha dor, mas como não podia tocar, fui socorrido por outra arte, a literatura – um ensaio biográfico do poeta da Vila, Noel Rosa.

Naquele silêncio sombrio, o rapaz da limpeza trabalhava furtivamente e escutava baixinho ao celular a canção do Belchior, “Sujeito de Sorte”: “Tenho sangrado demais/Tenho chorado para cachorro/Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Pois, Bel, assim como você em outra circunstância, pensei: “Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte porque, apesar de muito ‘não tão moço’, me sinto são, salvo e forte. E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado”. Chamei o fisioterapeuta e disse: “Eu quero caminhar. Preciso sair daqui”.

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