Um estudo revelou que rochas encontradas no município de Alto Santo, no Vale do Jaguaribe, foram usadas por povos do período pré-colonial para emissão de sons. Popularmente conhecidas como “pedras do sino”, os suportes rochosos apresentam marcas cupulares, ou seja, pequenas covas que indicam sua apropriação para percussão. Agora, uma nova pesquisa quer entender para que tipo de uso essa prática era feita.
O sítio arqueológico foi identificado, em 2011, pelo arqueólogo Agnelo Queirós, autor do trabalho, que é da região — nasceu em Jaguaribara. Sua curiosidade se dá, sobretudo, porque a história escrita e oral aponta que o Vale do Jaguaribe foi um dos cenários de maiores conflitos no processo de colonização do Ceará. “Tudo isso intrigou-me a gente a entender o porquê do Jaguaribe ficou por muito tempo no vácuo da Arqueologia, sendo o maior vale do Ceará, o rio maior, cheio de atividade indígena”, explica.
A região, por inteiro, é repleta de achados arqueológicos, principalmente gravuras que ficam próximas aos cursos d’água. Apenas uma lagoa, explica o pesquisador, possui mais de 100 blocos rochosos aflorados que surgem quando as águas baixam. “Quase todas com alguma gravação”, acrescenta Agnelo.
O seu trabalho, a princípio, foi sobre a arte rupestre encontrada ali, mas ao conhecer a “pedra do sino”, houve um novo olhar. “A gente percebeu que a prática (de percussão nas rochas) acontecia em algumas rochas”, detalha. São três rochas no total. Estes blocos são chamados assim, pois possuem propriedades sônicas especiais que, quando tocados ou percutidos com outra rocha, madeira, osso, ou material com igual, ou maior dureza, emitem sons agudos e timbres metálicos semelhantes ao emitido por um sino.
Embora este tipo de rocha ocorra em outras partes do mundo, inclusive no Brasil, o diferencial neste sítio arqueológico são as marcas cupulares, que indicam que foram produzidas nesse processo de infusão para emissão dessa sonoridade, que atravessou gerações. Para entender isso, Agnelo estudou as propriedades destas pedras. “Embora sejam todas graníticas, ficou claro que são rochas que, sendo percutidas, emitem o som de timbre metálico. Isso demonstra que esses povos tinham conhecimento profundo dos elementos daquela paisagem”, enxerga Queirós.
A pesquisa, publicada em artigo no último mês de fevereiro, também é assinada pela arqueóloga Conceição Lage e contou com as coautorias do geólogo César Veríssimo e do baterista e percussionista Henrique Sylos. Os dois últimos foram fundamentais para dar o caráter das marcas encontradas no sítio arqueológico. “Muitos achavam que as covinhas eram figuras, mas geralmente elas têm inciso, traço pintado. Nelas, não há nenhuma representação. São marcas dispersas na rocha feita por um instrumento com dureza igual ou maior, como outra pedra”, indica o arqueólogo.
Outros lugares
O pesquisador frisa que o uso dos elementos presentes em determinado território para produção de sons, seja para uma comunicação ou tipo de ritual, são antigos e permanecem presentes ainda hoje. “Alguns povos utilizavam essas rochas para a fabricação de litofone, assim como as primeiras flautas foram de ossos. Os povos indígenas no Alto do Rio Negro utilizam tronco ocos que produzem ritmos, que nossa cultura não entende. Na África, comunidades ainda se comunicam em árvores que produzem som que estrondam”, exemplifica.
Outras pedras semelhantes já foram encontradas no Nordeste, em municípios como Santa Luzia e São José de Espinharas, na Paraíba, contudo, o que chamou atenção foi um sítio localizado em Santana do Matos, no Rio Grande do Norte, que também apresenta marcas cupulares. Lá, a atividade, segundo o pesquisador Valdeci Santos Júnior, ocorreu, há cerca de 3 mil e 2 mil anos, com recorrência de aproximadamente 1.905 anos.
Para Agnelo, isso não é coincidência: “Essa dimensão de espaço, que pode parecer grande, a gente acha pequeno no contexto geológico e climático. O semiárido nordestino é formado por uma grande depressão do cristalino, que fez com que esses blocos rochosos chegassem à superfície. Então, nações inteiras podem ter vivido ali e essa prática foi sendo disseminada”.
O próximo passo é entender a relação destes povos com a rocha. Para isso, Agnelo vislumbra levar a pesquisa para um possível doutorado, onde quer aplicar a relação entre a arqueologia contextual e a arqueoacústica, além de pensar áreas como a geoarqueologia, linhas de pesquisa que são fortes, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos. “A partir daí, podemos entender as possibilidades de aqueles lugares serem escolhidos pela qualidade do som, de musicalidade e comunicação”, conclui.