Um dos símbolos da fé romeira, o uso do caminhão improvisado para conduzir passageiros, conhecido popularmente como “pau de arara”, se tornou Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. De autoria do deputado federal José Guimarães (PT-CE), a lei foi sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último dia 1º, em meio a comitiva de lideranças políticas e religiosas cearenses. Apesar deste reconhecimento, o uso deste tipo de transporte é proibido e já foi alvo de polêmica durante as romarias.
Em 1998, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou a Resolução nº 98, que dispõe sobre a autorização para o transporte de passageiros em veículo de carga. Nela, foram colocados restrições e critérios que chegaram a inviabilizar a reação de viagens nos tradicionais caminhões pau de arara. No entanto, a resolução de nº 82, que vigorou até 2014, autorizava o seu uso “em caráter excepcional”. A medida foi revogada por uma nova norma, a de Nº 508/2014, que proíbe a circulação dos paus de arara entre os Estados.
Até 2014, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) expedia uma autorização especial para os paus de arara trafegarem. Mas já naquele mesmo ano, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) passou a não aceitar aquele documento. Antes disso, em 2010, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal já havia aprovado o Projeto de Lei 2.561/07, que proíbe o uso deste tipo de veículo como transporte escolar. No entanto, não chegou a ser votado pela Casa.
RESISTÊNCIA
A mudança, a partir de 2014, causou grande resistência e debate nos dois principais centros de romaria do Ceará: Canindé e Juazeiro do Norte. Em 2015, inconformada com a mudança, o Santuário de São Francisco das Chagas, se recusou a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), elaborado pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), contemplando as novas regras. Mesmo sob risco de apreensão, vários veículos do tipo pau de arara circularam em Canindé na romaria daquele ano.
Em Juazeiro do Norte, a Romaria de Finados de 2015, a primeira logo após a proibição, foi marcada por protestos. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) realizou a chamada Operação Romaria Segura, que reforçou a fiscalização e apreendeu vários caminhões paus de arara. Em resposta, na época, as principais ruas e avenidas da terra do Padre Cícero foram bloqueadas pelos romeiros se manifestando contra a retenção. Mesmo após a polêmica, a proibição seguiu. Atualmente, é raro, mas ainda é possível encontrar estes veículos circulando nos principais eventos religiosos daquele município.

O último acidente registrado com pau de arara envolvendo as romarias aconteceu no dia 2 de novembro de 2015, quando quatro romeiros morreram quando voltavam de Juazeiro do Norte para o Sergipe. Seu veículo colidiu com um caminhão carregado de gesso na BR-316, nas proximidades de Ingazeira, na zona rural de Floresta (PE). O caminhão invadiu a pista contrária e bateu na lateral do transporte que trazia cerca de 20 devotos na caçamba. Dois foram arremessados e caíram na pista.
RECONHECIMENTO
A lei sancionada no primeiro dia deste mês de agosto reconhece o “uso do transporte de passageiros em veículos de carga, popularmente conhecido como ‘pau de arara’, para a realização de viagens por motivos religiosos, as conhecidas romarias, constituído como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil”. No entanto, na prática, a proibição de circulação segue válida.
Autor do projeto, o deputado José Guimarães, disse que as romarias têm sofrido mudanças, mas, “o legado e a cultura do pau de arara são o motivo para tal sanção”. Para justificar a aprovação, reforçou que “o pau de arara se consolidou como parte integrante da cultura nordestina”. O jornal Opinião CE entrou em contato com a assessoria do parlamentar, questionando se este reconhecimento não se contradiz com a atual regulamentação do Contran e se pode causar uma desinformação ao romeiro sobre a sua proibição, contudo, não tivemos resposta.
O prefeito de Juazeiro do Norte, Glêdson Bezerra, que esteve na solenidade que sancionou a lei em Brasília, explica que o momento é simbólico, “uma vez que os romeiros são determinantes para o desenvolvimento da nossa cidade”. “A gente tem que reafirmar sempre a importância, o nosso respeito e gratidão a toda a nação romeira, que se desloca, anualmente, para o nosso município”, completou.
Outro que também esteve na capital federal, o padre Cícero José da Silva, reitor da Basílica de Nossa Senhora das Dores, explica que o pau de arara traz na memória “a coragem dos primeiros peregrinos que iam a Juazeiro do Norte nas carrocerias adaptadas dos caminhões”. “Através da experiência de fé, contribuíram para a construção da identidade religiosa e cultural da cidade, além do desenvolvimento econômico”, acrescenta o sacerdote.
FISCALIZAÇÃO
Apesar de em menor número, caminhões pau de arara seguem chegando em Canindé e Juazeiro do Norte. Um caminhoneiro que pediu para não se identificar admitiu que anualmente ele e mais quatro motoristas saem de Alagoas em peregrinação às cidades cearenses utilizando as estradas carroçais. “Muita gente só tem o dinheiro da viagem e esse é o caminho mais barato”, explica.
Em nota, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE) explica que segue realizando a fiscalização em todas as rodovias estaduais com o objetivo de coibir o trânsito de veículos que estejam em situação irregular. Além disso, reforça que o transporte de pau de arara ainda não possui norma de fiscalização específica por parte do Contran e Senatran. Ao ser constatada a infração de transporte clandestino, o condutor é multado no valor de R$1.467,35. O jornal Opinião CE também procurou a PRF para saber se a fiscalização é intensificada durante as romarias, mas não teve retorno.
O diretor do Departamento Municipal de Trânsito de Juazeiro do Norte (Demutran), Adailton Silva, afirmou que, por serem oriundos de diversos estados, os romeiros passam pela fiscalização nas rodovias estaduais e que não cabe ao município coibi-los. “São visitantes. Nós os acolhemos e controlamos o fluxo dos seus veículos sem grandes rigores”, admitiu. A Prefeitura de Canindé informou que esse tipo de fiscalização é feita pela PRF antes mesmo dos transportes entrarem na cidade. “O município não fiscaliza transporte intermunicipal ou interestadual”, disse em nota.