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13 de outubro de 2024

Querem usurpar nossos direitos humanos

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Assassinatos de Dorothy Stang, em 2005, Bruno Pereira e Dom Phillips, este mês, trazem um alerta de maior risco à vida de quem habita a região Norte ou quer ajudar a proteger o Meio Ambiente

Giovana Brito
ESPECIAL PARA OPINIÃO CE
giovana.brito@opiniaoce.com.br

Foto: Reprodução/Site Governo Federal

Após 17 anos do crime contra Dorothy Stang, mais um caso de homicídio com os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips trazem à tona problemas enfrentados pelos povos indígenas do Brasil e por quem tenta defendê-los. Os objetivos em ambos os casos eram semelhantes.

Desde a sua chegada à Amazônia, em 1970, Dorothy dedicou-se a defender o direito à terra para camponeses e à criação de projetos de proteção da floresta, agindo junto à população e ao governo. Dorothy foi uma das primeiras pessoas a defender publicamente que as terras públicas deveriam ser destinadas à Reforma Agrária.

Madeireiros e pecuaristas não aceitaram as ações promovidas pela ativista e continuaram agindo nessas terras, ameaçando as famílias. Foi nesse cenário que organizaram uma emboscada para a Irmã Dorothy. No dia 12 de fevereiro de 2005, a missionária levou seis tiros em uma estrada rural dentro do Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS Esperança.

Este ano, Bruno Pereira e Dom Phillips realizavam um trabalho de pesquisa para o livro do britânico, bem como a luta do brasileiro em defesa das terras indígenas. Ambos desapareceram no dia 5 de junho. No dia 15, o superintendente da Polícia Federal (PF) no Amazonas, Alexandre Fontes, confirmou que Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como “Pelado”, confessou ter cometido o assassinato.

BRUNO DEFENDIA ÍNDIOS ISOLADOS NO JAVARI
Bruno Pereira foi exonerado do cargo de coordenador geral de Proteção a Índios Isolados, da Fundação Nacional do Índio (Funai), porque realizou uma operação que resultou na destruição de equipamentos e maquinários de garimpeiros. Por cerca de 10 anos, atuou na Terra Indígena Vale do Javari.

Bruno prestava trabalho de assessoria para a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e ajudava a identificar e combater ameaças. Em 2020, ele denunciou a volta dos garimpeiros na região menos de um ano depois da operação. Seu companheiro, Dom Phillipe, deixou o Reino Unido em 2007 e veio morar no Brasil, colaborando com grandes veículos de notícias do Mundo.

Parte das matérias eram voltadas A questões ambientais e problemas enfrentados pelas comunidades indígenas. O que repercute neste caso é a violência contra os Direitos Humanos e os diversos crimes por questões de interesse nas riquezas locais, como o garimpo.

Na região do Vale do Javari ocorre a pesca para alimentação dos pescadores locais e também pesca ilegal, a rota com tráfico de armas, drogas e roubo de madeira. Weibe Tapeba, coordenador da Federação e Organização dos Povos Indígenas do Ceará (Fepoince), explica sobre a região do Vale do Javari.

“Estive em Tabatinga e Benjamin Constant no início do ano. Faz parte da mesma região onde Bruno e Dom foram executados. A região é perigosa. O clima é permanentemente tenso. Conversando com parentes Tikuna, que é o povo com maior população indígena do Brasil, os mesmo relataram que naquela região a predominância do narcotráfico, madeireiros, garimpeiros, pescadores ilegais e outros grupos criminosos atuam na região de forma escancarada e sem nenhuma atuação do Estado Brasileiro. Os relatos davam conta de saques e assassinatos, desaparecimento de indígenas. Ouvi relatos de que vez por outra, voadeiras [barco com motor de rabeta] muito utilizado na região, são vistas devendo Rio abaixo sem nenhum tripulante ou com parentes mortos. Essa é uma das regiões mais perigosas do Brasil. A Terra Indígena Vale do Javari, além de ser a segunda Terra indígena maior do mundo, também é morada de dezenas de povos isolados ou de recente contato. Tudo isso, numa região fronteiriça”, conta.

Sofia Ximenes, membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE), aborda o limite do direito de ir e vir quando envolve terras cobiçadas e ameaçadas.

“Nestes casos, o limite do direito à locomoção é imposto pelo medo e a insegurança. Seja na Amazônia ou nas periferias do País, a presença da violência, inclusive a praticada por milícias, é efeito da omissão do Estado em garantir direitos fundamentais às pessoas destes territórios. É preocupante quando o próprio Estado não só é omisso, como também se torna agente violador de direitos.”

Nas proximidades do Vale do Javari, há a chamada tríplice fronteira amazônica, região de fronteira entre o Brasil, Peru e Colômbia. Esta área é ocupada principalmente pelos povos originários. Segundo o coordenador da Fepoince, elementos do ponto de vista estratégico favorecem aos crimes cometidos na área.

“A prática de assassinatos e desaparecimento de pessoas é muito comum na região e pouco se pune ou se investiga esses crimes. Então, fica um cenário descoberto e propício às práticas delituosas que têm ocorrido nessa região. Nessa região, quem luta pelo Meio Ambiente e pela proteção dos territórios indígenas, passa a ser inimigo desses grupos”, explica.

Sofia relembra o caso da morte de Chico Mendes, assassinado em 1988 por se contrapor ao avanço destrutivo de grileiros e fazendeiros na Amazônia. “É preocupante que, 34 anos após a morte de Chico Mendes, a violência dessa região tenha se intensificado e que, hoje, além da prática de exploração ilegal de madeira naquela região, também exista a presença de narcotraficantes e de milicianos.”

Foi com a formação de sindicatos no Acre que Chico Mendes entrou na luta por melhorias, fazendo parte da Diretoria do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasileia, em 1975. Ao longo da sua luta pela preservação do Meio Ambiente e melhores condições de trabalho para os seringueiros, Chico Mendes foi alvo de ameaças de morte, principalmente ao ganhar notoriedade na política.

O sindicalista chegou a contar com escolta policial para garantir sua segurança, mas foi atingido por tiros de escopeta disparados por Darci Alves, o qual cumpria ordens de seu pai, Darly Alves, grileiro de terras da região.

4º PAÍS MAIS PERIGOSO
O Brasil é o quarto país mais perigoso do mundo para ambientalistas, segundo relatório elaborado pela ONG Global Witness. Com 20 assassinatos, está atrás da Colômbia que teve 65 mortes, México com 30 e Filipinas 29. Em 2020, a América Latina foi a região mais letal do mundo para ambientalistas. Das 227 mortes, 165 foram em países latino-americanos, 72,7% do total.

No Brasil, a maior parte dos crimes (75%) ocorreu na Amazônia e vitimou indígenas. “No início da pandemia, ainda que mais de 6 mil indígenas não tenham acesso à água potável, o presidente da República vetou a distribuição de água potável a essas pessoas, a oferta emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva para elas. O território Yanomami que possui mais de 10 milhões de hectares, por exemplo, sofre com a presença de mercúrio em suas águas, substância utilizada no garimpo ilegal, o qual cresceu 3.350% de 2016 a 2020, segundo dados compilador pela HAY [Hutukara Associação Yanomami]. No mês passado, a OAB Pará alertou sobre a fragilidade da segurança nos territórios indígenas”, diz Sofia.

Segundo a Global Witness, em 2020, as principais atividades econômicas ligadas aos crimes registrados foram extração de madeira, conflitos por água e construção de barragens, mineração e agronegócio. Estes casos mostram que a exploração desenfreada dos recursos naturais e a ganância resultam um impacto cada vez mais violento na vida das comunidades.

“O atual governo estimula e apoia parte dessas atividades ilegais. Apoia, quando insiste ou articula politicamente para tentar legalizar a mineração em terras indígenas, como é o caso da força na tramitação do PL 191 que tenta regulamentar essa matéria no Congresso Nacional ou quando enfraquece o Ibama, a Polícia Federal, ICMBio e a própria Funai”, defende Weibe Tapeba.

“A Funai tem seguidamente recebido fortes influências políticas para reduzir ou deixar de realizar ações de proteção territorial. Acredito que o atual governo, além de ser responsável direto pela fragilização da política indigenista brasileira, é também responsável direto por esses crimes e pelo cenário de medo e de risco que existe nessa região e em diversas outras regiões do nosso país”, complementa.

O líder argumenta que as terras indígenas são bens da União, cabendo aos povos indígenas o direito ao usufruto exclusivo dessas áreas. Dentro desse aspecto, cabe citar o Marco Temporal, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).

Esta tese jurídica em debate há mais de 10 anos defende que os povos indígenas só têm direito a reivindicar determinada terra caso estivessem ocupando-a no momento em que a Constituição Federal foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. Weibe Tapeba defende a proteção das áreas de conservação e fala na importância dos incentivos.

“Não se pode também compreender a proteção dessas áreas sem considerar os povos originários e comunidades tradicionais que as ocupam. É preciso ações de fomento. Políticas financiadas com recursos públicos para fomentar as experiências de proteção já existentes e novas práticas que busquem o fortalecimento das ações de preservação e conservação ambiental. Recursos para a agricultura familiar e ações de etnodesenvolvimento.”

VISÃO
Não nos tirem nossos direitos
Quando pauto o caso do desaparecimento e mortes de Bruno e Dom no Vale do Javari, na Amazonia brasileira, vejo desrespeito aos Direitos Humanos em pelo menos dois campos: a) a invasão de áreas indígenas por negociadores ilegais, que desestabilizam a vida social dos povos originários daquele lugar, especialmente por meio da destruição de parte do seu Meio Ambiente por garimpos, de ameaças e promoção do medo, de conflitos e de mortes; b) os assassinatos de Dom e Bruno que, por óbvio, encontram o que há de mais grave nos atentados aos DHs: a retirada da vida de pessoas, sobretudo, porque foi motivada por interesses econômicos ilegais que Dom e Bruno combatiam, com vistas a dignificar a vida social e humanidade dos indígenas daquela região.

O papel do Estado a partir desse caso deve ser repensado, no sentido de desenvolver e/ou melhorar políticas públicas que associam municípios, estados e união no combate aos ilegalismos promovidos no Vale do Javari, que afrontam os DHs, e em outras regiões do Brasil que possuem problemas semelhantes. É importante lembrar que a Constituição brasileira é um sistema de leis matriciais que deve ser observado em seu conjunto Inter temático, à luz das compreensões jurídicas especializadas, quando provocadas formalmente.

Todavia, a observação lógica de normativas constitucionais me faz entender que o direito de ir e vir do cidadão não deve ser submetido às normas do crime organizado, pois isso contradiz a vida social pautada no Estado Democrático de Direito. Entanto, é real a corrupção das leis constitucionais por grupos determinados em favor dos mercados ilegais de drogas, de animais, de minérios, etc. Nas regiões nas quais as convenções criminosas atuam, o direito de ir e vir é, ilegalmente, limitado por essas normas. Isto evidencia a ausência parcial ou completa do estado, que contribui para que territórios ilegais de poder sejam erguidos com regras próprias, fundamentadas no terror, ao arrepio da constitucionalidade.

Por Kleber Saraiva – sociólogo e professor de Antropologia do Programa de Pós-graduação em Antropologia da UFC/Unilab e do Departamento de Ciências Sociais da UFC. O docente é também coordenador das duas licenciaturas indígenas da UFC, o Pitakajá e Kuaba

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