*Obra “Rapando Mandioca” é de autoria do artista plástico autodidata cearense Demeilson Ferreira. Desenhista e pintor, tem obras em vários estados brasileiros e países como França, Portugal, Canadá e Estados Unidos. Com várias exposições em nosso estado, o artista também coleciona várias participações em publicações literárias.
Noite de farinhada começava cedo. Bastava anoitecer e chegava um monte de gente. Era criança, adolescente, adulto e idoso, geralmente da mesma família. Meu avô tinha uma casa de farinha no Córrego do Urubu desde muito antes de eu nascer, porque eu sou filha do filho mais novo.
Eu lembro do cheiro das sacas de farinha na velha sala de piso de tijolo branco. Ficavam perto da porta de duas bandas lateral, que era por onde a gente passava pra ver o movimento do povo trabalhando.
No chão, as meninas e moças mais novas, descascando, muito habilidosas, as manivas, que era outro nome da mandioca. Tinha de todo o tamanho, e as facas eram muito afiadas.
Eu lembro que até tentei descascar junto, quando eu tinha uns dez anos, mas nunca tive muito jeito com isso. É tanto que até hoje eu tenho um descascador em casa para os legumes. Se eu descascar com a faca, o serviço fica muito mal feito.
Junto com as mandiocas branquinhas, tinha música, fofoca e paquera.
Os serviços mais pesados ficavam para os homens, como mexer a farinha no forno ou espremer a massa. Acompanhei o tempo que tinha uma grande roda para os serviços, porque era tudo manual, não tinha mecanização de nada. Depois, meu avô ganhou um motor dos filhos e ficou mais fácil.
Com muito trabalho, eles viravam a noite e, dizem, muitas casamentos e namoros saíram dessas farinhadas. A casa de farinha era um ponto de luz no meio da escuridão. Lugar pra namorar escondido ali por perto não faltava.
O físico dos homens que faziam o serviço braçal era de se admirar. Não tinham barriga, os braços fortes. E nem existia academia por lá naquele tempo. Fora a morenice natural do sol. Era bonito de se ver.
Uma das minhas tias perdeu um dedo no caititu, que era o triturador da mandioca. Por isso, eu morria de medo de acontecer o mesmo outra vez.
Se a farinhada começasse de noite, tudo acabava por volta das 3 da tarde do outro dia.
Além da farinha d’água e da goma, tinha tapioca com coco, que o povo chamava beiju e o biscoito, que era crocante, a minha comida preferida da farinhada. Com uma manteiguinha por cima e um café ficava bom demais.
Após a morte da minha avó, houve um tempo em que a minha tia, que assumiu a casa para cuidar do meu avô, recebia os turistas que iam para Jeri. Mostrava a casa quase intacta desde os tempos da infância dela. Os potes de água, o feijão, os urus e os baús nas camarinhas, os tucuns nos armadores.
Depois que meu avô faleceu, a casa de farinha foi desativada. A gente ainda armou umas redes em um Réveillon por lá. Quando a casa foi vendida, preferiram derrubar.
Como eu vi uma farinhada de perto, quando eu soube do novo sabor de sorvete criado por um homem quilombola em um festival de gastronomia, fiquei super curiosa para provar. Será se ele vai me lembrar essas noites na casa do meu avô? Vou pagar pra ver.