A Prefeitura de Fortaleza anunciou, na última semana, a criação do Núcleo Multidisciplinar de Atenção Individualizada para atender crianças que ficaram órfãs em consequência da covid-19. Inicialmente, a ação, considerada pioneira no País, vai atender 127 crianças da primeiríssima infância, de zero a três anos, que foram mapeadas a partir do cruzamento de dados das secretarias da Saúde, Educação e Assistência e da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).
A iniciativa é consequência de uma das principais demandas deixadas pela pandemia e influencia diretamente em nosso projeto de nação. A avaliação é da promotora de Justiça Antônia Lima Sousa, do Ministério Público do Ceará (MPCE), que atua na comarca de Fortaleza.
Em entrevista ao OPINIÃO CE, no prédio onde funciona a Procuradoria Geral de Justiça (PGJ), no Centro Administrativo do Cambeba, em Fortaleza, a promotora destacou avanços, desafios e consequências decorrentes da forma como o Estado se mobiliza para atender crianças e adolescentes que ficaram órfãos durante a pandemia.
OPINIÃO CE – A senhora pode falar sobre sua formação e atuação no MPCE?
ANTÔNIA LIMA – Sou promotora de Justiça. Ingressei no Ministério Público em 1996, mas, antes, tinha passado por uma experiência de advocacia pública, fui procuradora do município de Fortaleza. Também fui defensora pública do Estado e advogada dos movimentos sociais. Antes do Ministério Público, tive essa vivência no campo da advocacia, seja na privada, seja na advocacia pública, e também como defensora pública. Também fiz especializações. Uma, que acabou ficando como especialização, foi em direito público. Depois, no MPCE, fiz especialização em direito sanitário, em direito constitucional e processo constitucional, em direito da infância e juventude e, por fim, concluí o mestrado em políticas públicas. Eu já estava em uma promotoria, de 2014 para cá, que era específica de tutela coletiva, cuja principal missão é a fiscalização e o monitoramento de políticas públicas.
OPINIÃO CE – Há uma estimativa de 200 mil órfãos da covid no Brasil, de março de 2020 a fevereiro de 2022. No Nordeste, o número chegaria a 30 mil, e, no Ceará, entre seis e oito mil. Por que é tão importante a formulação de uma política permanente que atende esse público?
ANTÔNIA LIMA – Temos que ter dois olhares. Teremos infâncias e adolescências que precisarão do apoio do Estado, outras, não. Pela própria condição financeira, há arranjos familiares e parentais que vão resolver e dar uma resposta na atenção a esse indivíduo, seja ele criança ou adolescente. Outra realidade é de crianças e adolescentes que perderam seus provedores. Nesse contexto, os indivíduos precisam do apoio do Estado. Daí a necessidade de famílias que estão inseridas nos benefícios sociais terem esse aporte. Para essa criança que perdeu o seu provedor direto, que pode ter sido o pai, a mãe, um avô, um tio ou até uma pessoa que ela tem laços de afeto, mas que não formalizou a sua guarda, temos que encontrar modalidades de cuidado com arranjos parentais e familiares no sentido de evitar que essa criança vá para a institucionalização. Se algum parente quiser adotar e formalizar a guarda ou a tutela para esses cuidados, que a Defensoria Pública possa atuar. Por isso, o MPCE teve o cuidado de buscar a articulação com a Defensoria e de orientar às famílias ou aos conselheiros tutelares para que possam regularizar a guarda de uma criança ou adolescente.
OPINIÃO CE – Qual foi o trâmite para validar esse procedimento e o tornar efetivo?
ANTÔNIA LIMA – Nossa ação consistiu em um PA, que é um Procedimento Administrativo. Em 2021, na segunda onda [da covid], começou a se discutir, no âmbito do Ministério Público, que o Estado iniciasse os cuidados com essa questão da orfandade, que chamamos de órfãos da covid-19. Então, eu instaurei um Procedimento Administrativo, baseado em três eixos. Um era a identificação, localização e análise dos direitos fundamentais básicos. O segundo foi o eixo da segurança alimentar e material. Crianças e adolescentes que compõem o núcleo familiar de uma família da periferia da cidade, por exemplo, cujo provedor tenha falecido por conta da covid, ficaram sem assistência material e com risco de insegurança alimentar. O outro eixo, que é a minha especialidade, foi o da saúde mental.
OPINIÃO CE – Há algo de concreto, hoje, para atender esse público?
ANTÔNIA LIMA – A recomendação que a gente fez, à SPS [Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos] foi buscar, dentro dos municípios, identificar, pedir às suas secretarias de assistência social, que mandassem a relação de pessoas que estavam no CadÚnico. E como eles trabalharam a identificação? Eles pegaram o dado do CadÚnico dos municípios e bateram com os dados da Sesa [Secretaria da Saúde do Ceará]. Então, com base nisso, encontraram as famílias que eu digo que são só a pontinha do iceberg, porque são as famílias que são cadastradas, só um segmento. Foi feita uma projeção e a ideia era que, até junho agora, antes das vedações por estarmos em um ano eleitoral, porque, enfim, a nossa vontade é mais ágil do que a vontade política, isso ficasse pronto. Mas, não foi possível. A última informação que tenho é que esse benefício foi para a Casa Civil e está aguardando o aval do Governo. Não vai ser mais pago neste ano, mas, o que o secretário [Francisco] Ibiapina me falou é que vão deixar tudo pronto para começar a pagar em janeiro do ano que vem. Não são muitos casos. O benefício, com certeza, irá até os dezoito anos. À princípio, será algo em torno de R$ 500, o que ainda é muito pouco.
OPINIÃO CE – Como trabalhar a saúde mental dessas crianças e adolescentes?
ANTÔNIA LIMA – Eu também perdi o meu pai, senti na pele, uma pessoa adulta, o que é esse luto paterno. O luto é essa dor da saudade que fica para qualquer idade, mas, quando é colocada no âmbito da infância, isso se amplia. Teve uma mãe no Grande Bom Jardim que disse assim: ‘A minha filha morreu e deixou uma bebezinha de um ano. Essa menina, quando chega o horário que a mãe chegava do trabalho, começa a chorar e chora noite adentro.’ Então, imagina como essa criança vai se expressar para trabalhar esse luto, que não tem tempo certo para acabar, mas precisa ser acolhido para que essa dor não se transforme em uma ferida? Não sabemos o que vai ser daqui a dez, vinte, trinta, quarenta anos, quais serão as repercussões no âmbito da saúde mental dessas crianças e adolescentes, quais transtornos poderão ser desenvolvidos. Os postos de saúde são a porta de entrada do SUS [Sistema Único de Saúde] em qualquer comunidade do País. Então, é necessário que, no atendimento do posto de saúde, tenha um espaço de escuta. Essa criança pode nem precisar de um psicólogo ou de um psiquiatra, mas precisa verbalizar, falar da sua dor, das suas dificuldades. Esse espaço de escuta pode existir, podemos ter uma pessoa treinada para escutar. Isso no âmbito da unidade de saúde. Nas escolas, hoje, na rede do município, existem assistente social e psicólogo. Que seja trabalhada a escuta como uma forma de acolher o luto. É necessário unirmos as duas coisas, uma vez que os equipamentos de saúde mental em Fortaleza são insuficientes. Temos apenas dois CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] Infantis.
OPINIÃO CE – E quais as respostas do Governo Federal diante dessa demanda?
ANTÔNIA LIMA – A verdade é que não há, por parte desse Governo, uma preocupação com o indivíduo em processo de desenvolvimento. A infância e a adolescência são isso. É um ser que precisa do aporte da pessoa e de cuidados para poder se desenvolver. Se hoje estamos realizando nossas funções é porque tivemos a oportunidade de ter um processo educacional que nos levou a universidade, nos habilitou como profissionais e isso só foi possível porque tivemos um aporte familiar ou parental, que cuidou. E se esse aporte familiar precisar do Estado? O que o Governo fez? Cortou as verbas para assistência. Hoje, a assistência pública está funcionando sem o aporte do cofinanciamento federal.
OPINIÃO CE – Fortaleza terá um núcleo para atender, inicialmente, 127 crianças órfãs da pandemia. Qual a importância dessa ação? Como pode influenciar para a criação de políticas em nível estadual?
ANTÔNIA LIMA – Espero que Fortaleza seja uma bússola para o restante do Ceará, que oriente, que seja uma luz para os outros municípios de maior porte, como das regiões Sul, Norte, Centro-Sul. Penso também que, a proposta do Comdica [Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza], como foi colocada na resolução que dispõe sobre a criação do Grupo de Trabalho para os cuidados com a política voltada à primeira infância, já tem esse olhar multidisciplinar. Acho que, essa política construída para a primeira infância deva ser o desenho de um projeto ampliado para infância e adolescência.