Voltar ao topo

14 de maio de 2025

O fantástico Bigodeiro, por Antonio Rodrigues

Foto: Prefeitura de Juazeiro do Norte

Compartilhar:

Como centro de “oração e trabalho”, legado do crescimento urbano sobretudo de Juazeiro do Norte, a região do Cariri atraiu migrantes nordestinos na fuga da seca, em busca de oportunidade e, claro, atraídos pela fé no Padre Cícero — não necessariamente o primeiro motivo anula o segundo.

De várias partes do Nordeste, entre supostos bandidos fugidos da polícia, romeiros idosos que teriam sido abandonados por seus familiares e outras incontáveis hipóteses, as ruas das cidades de Barbalha, Crato e Juazeiro do Norte acumularam diversos personagens, os chamados “doidos”. Muitas vezes, eram (e são) pessoas em situação de rua e que por alguma característica peculiar chamavam a atenção da população.

Pais oportunizariam a existência destes andarilhos para colocar medo em suas crianças, seja para não brincarem na rua ou a prestarem obediência a eles. Comigo não foi diferente. João Remexe Bucho, Doida Amaral e uma senhora que se vestia dos pés à cabeça, que não me recordo seu nome agora, serviram para me assustar.

De todas estas figuras populares, uma em especial sempre me chamou atenção, apesar de sequer ter o conhecido. Bigodeiro, como era conhecido, se dizia ex-cangaceiro de Lampião e vivia nas ruas de Barbalha.

São poucos registros de sua passagem pelo Cariri. Uma das raras averbações de sua vida está no livro “A Ressureição de Zé Bonzim e Outras Estórias”, do saudoso barbalhense Tercio de Freitas, exímio contador de histórias e que conheceu Bigodeiro de perto. Segundo o escritor, ele surgiu “não se sabe de onde, do caixa-prego do bozó”, apesar de citar passagem pelas bandas de Pernambuco.

Ocupando a região da antiga estação ferroviária de Barbalha, onde atualmente é um terminal rodoviário, Bigodeiro dormia ao lado de outros mendigos que circulavam por ali. Perto de ficar cego, teria migrado para a cidade atraído pelo posto para tratamento de tracoma, herança da antiga política do Serviço de Profixalia Rural (SPR), que se espalhou no interior do Ceará na década de 1920.

Sua grande habilidade era mentir. Justava ao seu redor um punhado de crianças para contar suas histórias fantásticas, que narrava com tanta convicção que o mais cético conseguia acreditar. Tercio de Freitas dizia que Bigodeiro perdia a linha quando alguém passava por ele e gritava “Viva Cristo Rei!”. Não se sabe o porquê.

Um dia, sem mais nem menos, Bigodeiro desapareceria de Barbalha sem deixar vestígios. Supostamente teria ido para as bandas de Brejo Santo. De herança de sua passagem, uma poesia sua se transformou em música pela voz talentosa de Fagner, que gravou no seu novo álbum “Sorriso Novo”, de 1982. “Vapor do Luna” é a faixa 2 do lado B. A canção voltaria a ser gravada pelo grupo “Céu da Boca”, em divertido vídeo transmitido em 1983 no programa “Bar Academia”, da TV Manchete.

Se “doido” ou não, imagino que Bigodeiro foi, além de um grande contador de história, um raro poeta popular. “Vapor do Luna”, sua poesia, descreve com muito carinho uma Barbalha que não se conhece mais: da riqueza da cana de açúcar. São figuras como ele que mantêm a cidade pulsando.

Coluna de Antonio Rodrigues.

[ Mais notícias ]