Se você mora em Fortaleza, deve ter percebido que, neste período de freios da covid-19, a pobreza e a fome se tornaram cada vez mais visíveis pelas ruas da Capital. A cena, tão comum em esquinas, praças e sinais de trânsito, revela a ponta do iceberg de uma problemática muito maior, principalmente quando se trata da periferia fortalezense.
O desemprego e a evasão escolar, sobretudo, de jovens, têm acelerado o processo de pobreza e extrema pobreza na Cidade, apontam lideranças comunitárias de três bairros ouvidas pelo OPINIÃO CE: Curió, Ellery e Henrique Jorge.
Atualmente, são mais de 1,5 milhão de pessoas pobres ou extremamente pobres na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), o pior cenário dos últimos 10 anos. Os dados são do Boletim Desigualdade nas Metrópoles, elaborado pelo Observatório das Metrópoles a partir de números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) anual, do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), sobre a renda domiciliar per capita total.
Em Fortaleza, a cesta básica atingiu o valor de R$ 641, em julho, o que compra apenas os 12 produtos essenciais à alimentação mensal: arroz, feijão, carne, leite, manteiga, pão, café, açúcar, farinha, óleo, banana e tomate. Mais de um terço de quem vive na RMF, então, sequer consegue arcar com a comida, já que 37,6% da população amarga algum nível de pobreza, um total de 5,8% dela vivendo no nível mais extremo, de acordo com o levantamento.
Os números refletem diretamente na necessidade de sobrevivência de muitos moradores do bairro Curió. Segundo o líder comunitário Leehaney Cavalcanti, a estrutura social local segue com um processo de grande desigualdade. “Na região durante o período de pandemia, muitas pessoas tiveram que sair de suas casas alugadas, e muitas dessas pessoas ocuparam terrenos – do Estado ou abandonados pelos seus donos. Atualmente, há três grandes ocupações. No Curió, vivem mais de 10 mil pessoas”, explica.
Para Leehaney, a ajuda de custo do Auxílio Brasil do Governo Federal, no valor de R$ 600, não está sendo relevante. “Sabemos que a inflação vem aumentando o preço da carne, dos cereais e das verduras. Então, não adianta. As pessoas acham que é muita coisa, mas não dá para comprar o básico, somente o mínimo.”
Outro ponto crítico no bairro é a evasão de jovens de seus cursos superiores para poder conseguir emprego. “Muitos jovens, amigos meus inclusive, estavam em cursos superiores na área de Psicologia, Pedagogia e Marketing e saíram porque eram filhos de mães-solo e precisavam ajudar com dinheiro em casa para sobreviver. Tive muitos amigos e vizinhos que voltaram a cozinhar no fogão à lenha, por conta do preço do gás de cozinha”, revela entristecido.
Segundo o observatório, a renda média familiar na RMF, que inclui Fortaleza, chegou a R$ 1.234, em 2021, valor menor do que 10 anos atrás: em 2012, a média era R$ 1.263. O rendimento médio dos 40% mais pobres na Grande Fortaleza também caiu – em 2012, eram R$ 345 mensais; em 2021, R$ 328. A defasagem impacta o poder de comprar o básico, como alimentação.
Leehaney Cavalcanti acredita que o principal aspecto que o Brasil precisa mudar é no desenvolvimento social, principalmente na perspectiva da saúde, educação e práticas assistencialistas. “É importante que chegue até nós, que não tenha desvios. A médio prazo, a economia criativa também parte de uma perspectiva de um processo plural em que todos ganham. O Conjunto Palmeiras, que tem sua própria moeda, por exemplo. Investir nisso poderia transformar a realidade e diminuir as desigualdades.”
OLHAR PARA O JOVEM
Com 15 anos de atuação no bairro Ellery, o líder comunitário Wescley Sacramento enxerga potencialidade nos moradores, principalmente quando se trata de empreender, mas a falta de capital de giro dificulta o avanço, pondera.
“Eu observo que a economia na comunidade é muito forte. As pessoas têm uma grande potencial, porém há dificuldades de capital de giro para usar em seus próprios negócios, gerando muito desemprego.”
Para o representante da comunidade, o Auxílio Brasil contribui, mas não é a solução. “Não adianta criar vários auxílios financeiros se os valores do feijão e do arroz, por exemplo, continuam subindo. Em 15 anos, nunca vi tanta pobreza. As pessoas estão cada vez mais pobres, inclusive as aposentadas, uma vez que precisam sustentar os filhos que perderam seus empregos. A aposentadoria que era para duas pessoas se tornou para cinco pessoas.”
Wescley Sacramento acredita que a saída local e nacional para combater os altos índices de pobreza e desigualdade é o comprometimento de políticas públicas voltada aos jovens. “Eu acho que mais do que nunca o nosso país precisa de políticas públicas comprometidas. Quando fazemos investimentos para a vida das pessoas e para a educação, já se tem meio caminho andado para o que deveria ser feito. A falta dessas políticas é a responsável por tudo o que estamos passando enquanto sociedade.”
APOSENTADOS SENTIRAM NA PELE
Líder comunitário do bairro Henrique Jorge e professor, Diogo Negritude fala de uma realidade que também tem acontecido em outros bairros: a dependência de aposentadoria das pessoas mais velhas. Considerado o bairro mais antigo de Fortaleza, o Henrique Jorge é formado por um número expressivo de pessoas adultas que estão se encaminhando para a meia idade.
“Tecnicamente, a economia gira em torno das aposentadorias, e a moradia em torno de casas recebidas de heranças. Devido à crise, muitas pessoas da mesma família decidiram morar juntas para diminuir os custos com os aluguéis.” Ainda segundo Diogo Negritude, o desemprego, principalmente entre os mais jovens, aumentou. Já o público mais velho sofreu bastante com demissões, o que provocoua aumento de pessoas para compartilharem o mesmo lar.
“Coordeno um projeto social chamado Igualdade para Todos em que a maioria dos associados está recebendo o Auxílio Brasil. Pelo que analiso, a maior parte vem utilizando esse valor para pagar o aluguel. Durante a pandemia, muitos foram ameaçados de despejo, e esse auxílio está sendo bem aceito. O que precisa acontecer é a extensão desse benefício não somente até o mês de dezembro.”
Para o docente, o país só deve se transformar para melhor quando pautas de urgências sociais forem debatidas “sem medo e com isenção política, principalmente moradia, saúde e emprego.” “Se não tivermos projetos claros quanto a esses temas, iremos ter só paliativos e politicagem comunitária, como uma limpeza de um córrego ali e um asfalto acolá.”
A solução, defende, seria incentivar o empreendedorismo e a criação de cooperativas de trabalhadores, pois, se houver empreendedorismo e “não tiver a união dos trabalhadores criando e gerando novas oportunidades de empregos estaremos reféns dos grandes empresários e de seus subempregos.” “Empreender com o coletivo é a saída e não somente o empreendedorismo individual. Empoderar as pessoas de seus direitos sociais com incentivos de colaboradores, como escolas, mídia e organizações religiões é a solução, pois pessoas que conhecem seus direitos e compartilham lutam juntas e a unidade da luta conduzem para o resultado.”
IPEA PROJETA REDUÇÃO DA EXTREMA PROBREZA
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil deve fechar 2022 com redução nos índices de extrema pobreza. A projeção é de queda para 4,1% ainda este ano. Em 2019, o Brasil tinha uma taxa de extrema pobreza de 5,1%.
As estimativas do Ipea foram feitas com base no aumento do número de famílias beneficiadas pelo Auxílio Brasil. No primeiro semestre deste ano, 4 milhões de famílias foram adicionadas ao programa, segundo o Governo Federal.
Em relação ao orçamento, o reajuste no valor do benefício, que passou de R$ 400 para R$ 600, aumentou o custo do Auxílio Brasil em mais de R$ 30 bilhões até este mês. O Nordeste foi a região que mais recebeu recursos (R$ 13,3 mi), seguido pelo Sudeste (R$ 9,6 mi), Norte (R$ 3,1 mi), Sul (R$ 2,2 mi) e, por fim, Centro-Oeste (R$ 1,8 mi).
No mundo, a tendência é contrária. As previsões do Banco Mundial apontam que, até o final do ano, 115 milhões de pessoas a mais estarão vivendo com menos de US$ 1,90 ao dia, em decorrência da pandemia.