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18 de setembro de 2024

Música de preto para conscientizar, pacificar, educar e formar

Fundadora da Afrofunk Rio, Taísa Machado está à frente da plataforma do funk carioca. Educadora veio a Fortaleza a conversou com o OPINIÃO CE
Foto: Micaela Menezes

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Taísa Machado, de 33 anos, a “Chefona Mermo”, é atriz, roteirista, pesquisadora apaixonada pelo universo periférico carioca e curte mapear tendências de comportamento, estéticas e artísticas da cultura preta, como o funk. Ela esteve em Fortaleza para ministrar um grande aulão de funk para jovens da periferia da Capital cearense em dezembro na Escola Porto Iracema das Artes.

Fundadora da Afrofunk Rio, plataforma de experiências e conteúdos para o movimento funk carioca que atua como tecnologia social e o corpo dançante como fonte de conhecimento e inspiração, Taísa atua em frentes como co-curadoria do Escuta Festival (Instituto Moreira Salles 2021) e da FLUPP 2022, com o circuito Experiência Afrofunk, apresentadora do podcast “No Passinho do Funk” (produção Spotify e Kondzilla) e na websérie “Querendo Assunto” junto à escritora Ana Paula Lisboa e a jornalista Ellen Paes.

Em entrevista ao OPINIÃO CE, Taísa afirma que se encantou ao aterrissar em terras alencarinas e comprovar que, assim como em cidades do norte brasileiro, Fortaleza tem uma veia própria para o gênero que vai muito além de uma simples dança com batida e pessoas rebolando.

OPINIÃO CE: Quem é a Taísa Machado no cenário do Afrofunk atual?
TAÍSA MACHADO: Quando eu criei o Afrofunk e eu cheguei no cenário do funk carioca foi por meio da dança e do corpo. Tive uma oportunidade de fazer um espetáculo, que se chama “A Mulher que Inventou a Dança”, também atuei como DJ tocando nas festas, mas agora eu estou por trás, vendo o funk se expandir com as pessoas prestando atenção na perspectiva afro, nessas heranças africanas, nessa conexão entre a comunidade preta e o movimento artístico. E é por causa disso que eu também tenho feito muitos trabalhos de curadoria, de roteiro de cinema, de escrita e de mentoria. O que eu sinto com isso é que o movimento do funk está cada vez mais atravessando linguagens e não fica mais só ali contido na dança e na música. O gênero está no cinema, nos artigos acadêmicos, nos espetáculos de teatro e eu fico passeando por esses espaços atualmente.

OPINIÃO CE: Como o Afrofunk do Rio têm transformado a vida das pessoas de lá? E aqui, em Fortaleza, tem diferença quando se fala em funk?
TAÍSA MACHADO: O funk tem a ver necessariamente com a comunidade preta, por isso a palavra “afro” foi incluída.” No Rio de Janeiro, isso está como uma crescente agora. O DJ Renan da Penha, por exemplo, está criando um movimento chamado Afrofunk Beat, que mistura com outros ritmos da diáspora africana. Cada vez mais o funk está sendo conexão com o “ser preto/preta”. Isso é uma vitória. Em relação a Fortaleza, a cena de criação favelada está em ebulição. Essa cidade faz parte das capitais que está fazendo o movimento de criar o Xote Funk, que é a mistura de Forró com o Funk. O ritmo xote, inclusive, tem semelhança com o jeito de produzir funk, assim como a versão eletrônica do Forró. Toda vez que esse tipo de movimento mesclado surge dá muita autoestima para quem é da favela e, consequentemente, para quem se identifica com essa autoprodução preta. Fortaleza está super no mapa, assim como Recife, Belo Horizonte, Vitória, dentre outras.

OPINIÃO CE: Como é lecionar a arte do Afrofunk?
TAÍSA MACHADO: A aula de Afrofunk não é só uma aula de ritmo funk. Ela tem esse desejo de se conectar com outras linguagens de dança que conversam com funk. Nós damos uma passeada, uma misturada, principalmente com as danças de matriz africana. Gostaria de ressaltar que o que eu ensino, o Afrofunk, se especializou em ensinar e pensar os corpos femininos. Há um teor de pesquisa também: como esse rebolado é visto na sociedade, politicamente. A mulher que rebola. E tudo isso já traz uma diferença em relação às outras danças. Geralmente, quando a pessoa dança balé clássico ou até mesmo a dança contemporânea, é muito mais fácil a sociedade enxergar essas pessoas como profissionais da dança. Mas se você é uma mulher que rebola e que dança, por exemplo, bregafunk já é mais difícil. Parece que não tem uma técnica. Não é fácil dançar funk. E não é só dançar. Historicamente, esse movimento funk ainda é um gênero artístico que ainda dita muito sobre o corpo da mulher. Passa por esse lugar da objetificação, da hipersexualização. Tudo isso é questionado. É o que eu sinto ainda quando eles “toleram” e pensam: ‘Você quer existir e ainda quer ser feliz?’ É difícil, mas é um trabalho sério que a gente faz, principalmente para discutir com profundidade o tema. No entanto, o funk tem força para ser debatido e discutido. Um equipamento cultural como o Porto Iracema das Artes, do Governo do Estado, quando abre seus espaços e acolhe projetos que querem pensar o funk e o corpo, abre também possibilidades dos artistas não só daqui, mas do Brasil inteiro conseguirem ser vistos. Não é só balada, é além.

OPINIÃO CE: Você acredita que ainda tem muito preconceito envolvido?
TAÍSA MACHADO: Acho que tem muito preconceito envolvido ainda. Já diminuiu, a gente já caminhou. São vários: o das questões racionais, o das classes sociais e os de gênero. A mulher que rebola, por exemplo, ainda é muito taxada de burra (sic). Aí vem a quebra: eu sou uma pessoa que gosto de rebolar e de usar shortinho curto, ao mesmo tempo com mestrado e estudiosa de várias coisas. Isso causa espanto. Fica todo mundo ‘Ué, mas ela é universitária e está fazendo isso?’ Ainda tem esse pensamento atrasado de que uma dança que usa muito o corpo exclui a possibilidade de produção de pensamentos. Outro ponto que quero ressaltar é o estigma. Nós temos muita dificuldade de colocar o funk, por exemplo, em cadernos de cultura. Geralmente, estamos em cadernos policiais. Em contrapartida, o funk é uma das maiores indútrias fonográficas brasileiras. Durante muitos anos, o maior canal do Youtube do Brasil era um canal de funk. O funk é um espaço de sonhos. É lá que muitas pessoas ganham dinheiro, ajudam suas famílias, ajudam suas comunidades. Então, tem que ser valorizado.

OPINIÃO CE: Você tem um livro publicado e vendido em todo o país, inclusive na Amazon, que se chama “O afrofunk e a ciência do rebolado.” O que você aborda nele?
TAÍSA MACHADO: Esse livro tem um formato diferente: é de entrevista e faz parte da coletânea Cabeças da Periferia, da editora Cobogó. A obra narra, numa série de entrevistas, os 9 anos de história do Afrofunk em meus 15 anos de carreira, passando pelo Teatro, pela Literatura, pela Dança, mas sempre focado na produção de arte da periferia, da afrorreligiosidade e, principalmente, do funk. Também falo um pouco do método, das oficinas que faço pelo Brasil inteiro. Além disso tem também muita pesquisa sobre as danças da Tanzânia, de Angola. É um livro fácil de ler, acessível, cheio de gírias. É uma conversa entre amigos. Todas as vezes que saí de casa para ir para um baile funk nunca imaginei que isso resultaria numa pesquisa e num livro. O funk, assim como qualquer linguagem artística, pode levar você para lugares que você nunca imaginou. Eu estou numa livraria!

OPINIÃO CE: Como você definiria a arte em sua vida?
TAÍSA MACHADO: A arte é o lugar mais confortável do mundo para mim. É muito difícil ficar no mundo, viver no mundo, e aí quando eu chego num espaço onde eu posso pensar a minha arte, quebrar os muros que estão na minha frente, mexer meu corpo, botar minha cabeça para pensar, trocar com outros artistas, pensar a história da minha cidade, eu fico feliz. Arte é possibilidade e movimento. Quando você tem acesso a isso, tanto de receber quanto de fazer a arte, você bota o mundo em movimento.

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