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20 de abril de 2025

Memórias prévias de um cobrador pensante ou o primeiro livro que eu ganhei de presente

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O ano era 1998. Há dois anos, eu era aluna de um dos cinco colégios que mais aprovava no Vestibular. Era muito sozinha. Na hora do recreio, em vez de papear com os amigos, eu preferia ficar na biblioteca da escola, até porque não podíamos levar os livros do acervo para casa. Eu não tinha ficha em biblioteca nenhuma e os livros da minha casa eram enciclopédias. Ler era uma das minhas poucas diversões.

Sobre Machado de Assis, eu já tinha ouvido falar. Muita gente dizia que era difícil, arrastado. O primeiro livro paradidático daquele ano era dele, Helena. Eu achei super chato, a protagonista insossa. Naquela época, já gostava mais dos naturalistas. Amava o Cortiço, por exemplo. E gostava muito do Paulo Coelho, o queridinho dos meus amigos de outras escolas.

Desde o início do ano, por causa do horário, eu sempre pegava o mesmo ônibus na ida e na volta para a escola. Na ida, no expresso das 6h10, eu passava a viagem dormindo no ombro do meu pai. Na volta, umas 12h30, sempre era a mesma turma esfomeada de adolescentes. Eu, Wellington e Raphael éramos colegas na escola anterior. Estávamos sempre juntos, embora eu estudasse em uma escola e eles dois, em outra. O cobrador fez amizade com a gente. O nome dele era Luís Antônio.  

Apesar de trabalhar há muitos anos como cobrador da Empresa Vitória, Luís queria ter feito Letras. No entanto, quando tentou o vestibular a primeira vez, não passou e desistiu. Teve que começar a trabalhar e o sonho ficou esquecido. No entanto, sempre tentava ler em casa e tinha ficha na Biblioteca Pública. 

Aos quase 30 anos, amava Machado de Assis e vários outros autores clássicos, como José de Alencar e Eça de Queiroz. O realismo era o seu período preferido na Literatura. Como só eu gostava de ler, ele falava mais desses assuntos comigo.

Comendo uma pipoca de isopor, a gente discutia sobre os livros preferidos, no percurso entre o Centro de Fortaleza e o Araturi, em Caucaia. Eu gostava de A viuvinha e Cinco Minutos, do José de Alencar, que li por conta própria e do Guarani, que a escola mandou ler. Já conhecia Dom Casmurro, que pedi emprestado a um amigo. 

Ao falar isso para ele, ele logo falou: já sei o que eu vou te dar de presente de 15 anos! Um livro ainda melhor, que é o meu preferido dele: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Você vai gostar muito. Não desanime se você achar alguma coisa difícil nele, apenas continue. 

Então, numa noite de sábado, o Luís Antônio me entregou o Memórias Póstumas de Brás Cubas embalado num papel de presente. Foi o primeiro livro que eu ganhei de um amigo. Antes desse, eu tinha recebido uns paradidáticos de uns primos distantes de São Paulo. 

A edição simples, talvez de sebo, da Editora Ática, com uma capa nada a ver, trazia estampada um cara morto de barba grande e derretendo em cores. A maioria dos clássicos paradidáticos daquele tempo tinha umas capas bem ruins. 

Lembro que, com o meu repertório fraco daquela época, eu precisei reler para entender. Depois de mais de 20 anos, só lembro que das muitas conversas com o leitor, o que é uma característica do autor que eu amo, ironia e a frase que abre o livro. 

O Luís Antônio, nunca mais eu vi, embora tenha me acompanhado ainda o Ensino Médio inteiro e o início da faculdade, no mesmo horário de ônibus. Além das conversas sobre Literatura, a gente também falava sobre religião. Eu, muito católica e ele, sem religião definida, sempre questionava minhas crenças. Em alguns dias, eu ficava com raiva. Em outros, ele me colocava para pensar. 

O livro, eu devo ter emprestado para alguém e nunca mais voltou. Esse tipo de erro eu aprendi a não cometer mais. 

Nesse mês, uma moça americana disse que esse livro do Machado era o melhor já escrito. Isso fez com que a obra disparasse nas vendas em toda a América e também no Brasil. Só tem entrega para meados de junho, eu conferi. Isso me fez recordar que eu tinha prometido reler, que nem fiz com o Dom Casmurro e Helena, dois dos livros mais fantásticos que já reli na vida depois dos 30 anos.

Vou tratar de colocar no meu kindle. Também fiquei curiosa em saber como está o Luís Antônio. Sua casinha na Jurema continua no mesmo lugar. No entanto, nem tem mais cobrador nos ônibus. Tomara que ele esteja bem e ainda goste de ler. Qualquer dia, eu bato no portão dele e agradeço pelo livro de novo. 

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