Na década de 1920, reinou na região do Cariri um bando de cangaceiros conhecido por Marcelinos. A fama deles chegou a ser notícia em várias partes do Ceará. “O audacioso grupo de bandoleiros chefiados pelos irmãos Marcelinos continua a praticar os mais audaciosos crimes no Cariry, de onde, todos os dias, chegam notícias de suas façanhas”, anunciava o jornal sobralense A Ordem, no dia 7 de setembro de 1927. Contudo, o grupo teve um fim trágico, sendo fuzilado pela polícia há 95 anos, no sítio Alto do Leião, em Barbalha.
O escritor e médico Napoleão Tavares, que faleceu no ano passado, narra que o envolvimento dos três irmãos Marcelinos com o cangaço começa quando o mais velho, o vaqueiro João Marcelino, se sente humilhado pelo delegado Ioiô Peixoto no meio da feira de Serrita, em Pernambuco. Com a ajuda de seu irmão Manoel, resolveu se vingar e matar o policial. Depois disso, vendeu tudo que tinha e passou a ser cangaceiro, atuando na Chapada do Araripe.
Manoel e João começam sua vida de banditismo por volta de 1923. O caçula Raimundo, mais tarde, se une a eles, ganhando a alcunha de Lua Branca. Os três serviram por um tempo o bando de Lampião, inclusive, Manoel, ganha dele o nome de Bom de Veras, e passa a ser respeitado pelo sertão por sua agilidade, coragem e destreza com as armas.

O médico e pesquisador da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, Leandro Cardoso, explica que virar cangaceiro naquela época era comum. “A tônica até o final do século XIX e início do século V no Brasil é da imposição, do terror, da violência. Se sobressaia socialmente aquele que era mais violento, quem manejava melhor as armas de fogo ou brancas, porque não existia o Estado. O Estado não chegava nas pessoas”, explica.
Os Marcelinos optaram por não seguir o bando de Lampião e praticar pequenos crimes, como assaltos e roubos sobretudo nas cidades de Jardim, Barbalha, Crato e Cariri-Mirim, em Pernambuco. Os mais antigos contam que chegaram a matar pessoas inocentes, como o agricultor Joaquim Guida, residente no Baixio do Muquém, em Crato. Sem piedade, ele teria sido assassinado pelo grupo, que não levou nada dele, nem mesmo a feira e seu dinheiro.
O momento mais marcante do bando foi a invasão na cidade de Barbalha para matar o coronel Antônio Xavier, mas a ação foi um grande fracasso. Na calada da noite, se esconderam nos arredores do casarão e, ao avistar o seu alvo pela janela durante o jantar, atiraram várias vezes. Ao contrário de sangue, estilhaços de vidro “jorraram” da vítima, pois a bala acertou o espelho. Ao perceber o erro, fugiram para a Chapada do Araripe.
FIM TRÁGICO
Os Marcelinos já eram os principais inimigos da polícia do Cariri na década de 1920 e as caçadas ao bando eram frequentes. No entanto, só veio a ter sucesso após quase cinco anos de atuação do grupo. O primeiro capturado foi o mais velho, o popular João 22, que entrou morto em Barbalha no dia 3 de janeiro de 1928, pendurado em um pau, desfilando nas ruas. O seu cabelo se arrastava pelo chão, enquanto os policiais eram celebrados como heróis. Dias depois, seria enterrado como indigente numa cova qualquer.
Três dias depois, ferido do combate, foi a vez de Raimundo Marcelino, o Lua Branca, ser capturado junto com mais quatro homens e levado à delegacia pública de Barbalha. No dia 6 de janeiro, os cinco rapazes supostamente seriam transferidos de trem para Fortaleza, onde iam ser ouvidos e julgados pelos seus crimes. Mas o trajeto foi interrompido no Sítio Alto do Leitão, em Barbalha, onde foram obrigados a cavarem suas próprias covas, antes de serem fuzilados pela polícia.
Quem deu a ordem de atirar foi o sargento Zé Antônio da Acauã, de Juazeiro do Norte. Morreram Pedro Miranda, Joaquim Gomes, João Gomes, Manoel Toalha e o Lua Branca. Segundo Napoleão Tavares, alguns deles sequer viviam do cangaço. Eram amigos ou mensageiros do banco. Manoel, por exemplo, era garçom e, porventura, estava com o grupo quando foram capturados.
“Os cangaceiros Marcelinos não tiveram uma grande representatividade, como os Curisco e os Labareda. Eles fizeram pequenos assaltos, mas não foram de grande importância historiografia do cangaço. A coisa mais importante é a maneira brutal como foram mortos”, acredita Leandro Cardoso.

MEMÓRIA
Com quase quatro décadas depois, a história da morte dos Marcelinos seria resgatada por Napoleão Tavares, que descobriu os seus túmulos, enquanto caminhava a cavalo em direção ao Crato para estudar. Ao retornar de Recife, já com seu diploma de Medicina, retornou ao local encontrando cruzes dentro do mato. Não tinha nomes ou flores. Por sua iniciativa e do advogado Josafá Magalhães, o espaço foi restaurado e passou a ser visitado e local de pequenas celebrações religiosas.
Atualmente, as covas estão num terreno privado, cercadas por arame farpado e cobertas por mato. Algumas cruzes estão caídas ao chão e as mais antigas, sumiram. Por isso, os memorialistas do Cariri lutam para que a história do fuzilamento seja preservada e contada como forma de evidenciar a violência estatal a partir da forma que foram mortos. “Eles não tiveram chance de defesa ou de pagar pelos seus crimes”, reforça Cardoso.
De acordo com o secretário de Cultura de Barbalha, Isaac Luna, o Município estuda a desapropriação do terreno onde estão os túmulos. O processo começou no ano passado com a topografia da área. “Encaminhamos isso para a Procuradoria do Município”, detalha. Ainda que não detenha o imóvel, a gestão também realizou visitas técnicas e fez uma limpeza ao redor das covas.
A ideia é que, a partir da desapropriação, o local se torne um espaço de memória importante para a história do cangaço no Cariri cearense. “Hoje, sendo um terreno privado, não temos como ampliar nenhuma ação ali. Estamos aguardando o parecer da procuradoria para encaminhar a desapropriação e adaptar o local para visitação pública com estrutura adequada”, completou o secretário. A expectativa é que o processo seja concluído ainda em 2023.
