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17 de janeiro de 2025

“Estamos numa sociedade patriarcal, que erotiza traços das vítimas”

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Vicente Emanuel, psicólogo que atua no Creas de São Gonçalo do Amarante, na RMF, destaca em entrevista ao OPINIÃO CE, impactos e desafios no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes

Rodrigo Rodrigues
rodrigo.rodrigues@opiniaoce.com.br

Fotos: Natinho Rodrigues

O mês de maio é marcado pela promoção do Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. No último dia 24, foi sancionada, sem vetos, a Lei Henry Borel, que endurece as penas para crimes contra crianças e adolescentes e cria mecanismos de enfrentamento à violência doméstica contra menores. O avanço é encarado como um marco na proteção deste público, inclusive contra violações sexuais.

O psicólogo Vicente Emanuel Ribeiro Macedo Alves, que atua no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), equipamento de média complexidade que atende casos de violações de direitos, no município de São Gonçalo do Amarante, na Grande Fortaleza, acredita que há um avanço na legislação para coibir esse tipo de crime, mas são necessários uma participação mais integrada da sociedade e o fortalecimento dos mecanismo de denúncias.
Ao OPINIÃO CE, o profissional detalha, em entrevista, quais os impactos sofridos pelas vítimas e o papel da sociedade nesse contexto.

OPINIÃO CE – Qual a importância de uma política de combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes?
VICENTE EMANUEL – O enfoque para o abuso e exploração sexual já vem como uma necessidade eminente, para que a população entenda que violência sexual não é apenas o estupro e o estupro não é apenas a penetração genital forçada. Existe e acontece uma variedade enorme de violências sexuais que produzem danos físicos, sociais e psicológicos profundos e gravíssimos. Abusos sexuais não possuem necessariamente um toque físico nem a utilização de força. Uma vez que a maioria dos casos são realizados por conhecidos, as vítimas podem não identificar atos como sendo violentos, apesar de ainda assim sentirem as consequências devastadoras dos atos.

OPINIÃO CE – Dados do Governo Federal indicam que, em 2022, já foram registradas 4.486 denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes ligados a situações de violência sexual. Quais os perfis desses casos?
VICENTE EMANUEL – A grande maioria das vítimas de violência sexual são meninas, quase 80%. A maioria dos casos acontece entre 10 e 14 anos, sendo 13 anos a idade mais frequente. Para os meninos, o crime se concentra na infância, especialmente entre os 3 e 9 anos de idade. A maioria dos casos acontecem na própria residência das vítimas. 86% dos autores da violência eram conhecidos. É necessário ainda ressaltar o alarmante problema da subnotificação. Ainda é preciso avanços na capacitação de agentes, do registro e de uma plataforma confiável para formulação de políticas mais adequadas. No Ceará, os dados que temos acesso são os produzidos pelo Ministério da Saúde/SUS, tendo como notificação compulsória no SINAN [Sistema de Informação de Agravos de Notificação]. Entre 2009 a 2021, foram registrados 5.279 casos de violência sexual com crianças e adolescentes. Do total, 2.356 tinham entre 10 e 14 anos. Há um aumento vertiginoso progressivo, nos três últimos anos foram registrados 2.564 casos (48,5%), em parte pelo fenômeno da pandemia que deixou crianças e adolescentes ainda mais expostas aos seus abusadores no cenário de isolamento, como pela busca de fazer os dados serem melhor registrados.

OPINIÃO CE – Como mitigar esses dados?
VICENTE EMANUEL – Estamos numa sociedade com marcas profundas de uma colonização hierarquizadora, patriarcal, machista, que erotiza traços das vítimas bem como é hipócrita com um falso-moralismo que silencia e vulnerabiliza ainda mais as crianças e adolescentes. É necessário campanhas cada vez mais amplas e fortalecedoras para que as vítimas busquem ajuda. Observamos tais fenômenos em contextos que descredibiliza e destitui de direitos crianças e adolescentes, culpabiliza as vítimas por fatores totalmente irrelevantes, como sua postura, sua vestimenta, palavras que reproduz. Também fica evidente na falsa ideia de que os homens/pais de família seriam os senhores absolutos dos lares, como se pudessem mandar e usar os corpos dentro do domicílio, como se fosse uma esfera separada da pública e que segue leis autoritárias. Tal fenômeno também atinge a rede de apoio das vítimas, já que muitas mães são vitimizadas pelos abusadores, através de ameaças, violências físicas, psicológicas, dependência financeira, psicológica e religiosa.

OPINIÃO CE – Quais políticas já existentes você destaca?
VICENTE EMANUEL – No Ceará, contamos com o Programa Rede Aquarela, que foi criado em 2005 pela Fundação da Criança e da Família Cidadã, que articula e executa a Política Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil, realizando ações de prevenção, mobilização e atendimento especializado para vítimas de violência e suas famílias. O Programa realiza o atendimento de vítimas submetidas à exploração, tráfico e abuso sexual, sendo referência nacional no enfrentamento da violência sexual por desenvolver ações preventivas e atendimento direto às vítimas e seus familiares. De forma territorializada, cada município deve contar com um sistema básico de proteção à criança e adolescente, prefigurado no Estatuto da Criança e do Adolescente. Em especial, o Conselho Tutelar é o espaço que é acionado e articula essa rede de proteção. Em situações de emergência temos o número 190 e os contatos das delegacias locais. Para acompanhamento psicológico, assistencial e jurídico é que também são direcionadas aos CREAS ou equipamentos que assumam a demanda. Muitos avanços têm sido conquistados nos últimos anos, mas ainda é preciso avançar, principalmente na prevenção e notificação. O tabu ainda é devastador, agravante e afasta as pessoas dos serviços necessários.

OPINIÃO CE – Quais os impactos deixados na vida dessas crianças violentadas?
VICENTE EMANUEL – Crianças e adolescentes estão em processo de intenso desenvolvimento psicológico, físico e social. Necessitam de total apoio para que acontecimentos nesse período não venham causar danos por toda a vida. Muitas vezes as vítimas se sentem abandonadas pelos adultos que deveriam ajudá-las. Depois, visualizam o quanto foram negligenciadas e violadas e uma aversão a entes próximos chega a ser insuportável e irremediável. É mais frequente na vida adulta dessas vítimas comportamentos antissociais, ansiedade, depressão, automutilação, ideação suicida etc. Portanto, quanto antes receberem ajuda profissional, menos danos tendem a se estabelecer na vida das pessoas. Obviamente, um acompanhamento psicológico e de outros profissionais de saúde a qualquer momento da vida é potencialmente benéfico, mas há muito sofrimento que poderia ter sido interrompido muito antes.

OPINIÃO CE – Quais os sinais a serem percebidos para a denúncia?
VICENTE EMANUEL – Mudanças de comportamento, aparência e humor. Tais como isolamento, desconfiança, medos, agressividade, tristeza ou quietude de crianças e adolescentes. Mudanças de hábitos, como alterações no apetite, no sono, insônia, terror noturno, pesadelos, falta de concentração. Proximidade estranha com adultos, tanto contato excessivo como rejeição a alguma pessoa. Regressão a comportamentos infantis, como chorar sem motivos aparentes, voltar a fazer xixi na cama, ou voltar a chupar dedo. Segredos. Receber presentes, dinheiro ou outros benefícios. Alguns indícios físicos, como dificuldade de andar ou sentar, marcas, traumas, lesões, roxos, ou dores e inchaços nas regiões genitais. Deixar de fazer atividades que antes gostava. Alguns abusadores também demonstram ciúmes excessivo das vítimas, controlar suas ações ou isolá-la. Esses sinais isolados podem não configurar violências, mas demonstram sinais de alerta a serem investigados e solicitar profissionais de apoio.

OPINIÃO CE – Como realizar essas denúncias?
VICENTE EMANUEL – Os canais de denúncia estão recebendo os avanços que as tecnologias podem produzir, mas cabe ressaltar o Disque 100 como um modo acessível e potente. De qualquer aparelho celular/telefônico é possível ligar gratuitamente, informar sobre qualquer violência contra criança e adolescente, informar dados de contato com a vítima, abusador e acontecimentos, sem necessitar de provas, apenas suspeitas já são o suficiente para que a vítima receba atendimentos sem que ninguém saiba quem denunciou. Muitas vezes, professores da rede de educação são a porta de entrada de inúmeras denúncias, porém, lhes faltam informação e proteção necessária para realizar os devidos encaminhamentos. Muitos profissionais acham que podem sofrer represálias, perseguições e até processos de calúnia. Desinformações assim fazem com que vítimas de violências sexuais permaneçam vitimadas por longos períodos.

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