O ano do Vestibular. O período mais desafiador até então havia chegado. Com 16 anos, desde que comecei a estudar na escola grande, sabia que não teria outra chance grátis, caso não passasse. Se eu não fosse aprovada ao concluir o Ensino Médio, teria que trabalhar para pagar um cursinho ou a faculdade. A tarefa dos meus pais acabava ali. Pelo menos, com relação aos estudos.
Com essa pressão nas costas, eu dei o meu máximo naquele ano. Passei o ano sem paqueras e namoradinhos. Tomava pó de guaraná como café da manhã para manter a energia logo cedo. No entanto, meu sono sempre foi muito potente e de nada adiantou esse estimulante. Aqui, acolá, eu dava umas cochiladas na aula e nem sempre conseguia aprender as matérias.
No meio de tudo isso, a lista de livros para a prova da Universidade Federal do Ceará. Desde o ano anterior, tinha decidido que faria Jornalismo. Mas a lista de livros era para todos os cursos. Uma vez na semana, subíamos até o quarto andar da escola para assistirmos aula com o professor Carlos Augusto Viana, escritor e membro da Academia Cearense de Letras.
Nada de prazer na discussão dos livros. Era treinar todo tipo de questão. Quem preferisse não ler poderia ver os resumos na apostila. Esse nunca foi meu caminho. Preferi ler de um por um e, dessa vez, meu pai comprou todos.
Alguns, seriam releituras, como era o caso de Helena e Memórias de um Sargento de Milícias. Os demais, prometiam ser difíceis. Laços de Família, de Clarice Lispector, despertou o ódio de muita gente. A Jangada de Pedra, do Saramago, era complicado por não ter pontuação. Foi bem difícil de concluir. Os poemas de Beira-Sol, à época, não me emocionaram e despertaram enfado, assim como o romance regionalista cearense Luzia-Homem.
Os queridinhos do ano foram o Dora Doralina, de Rachel de Queiroz e o Relembranças, de Milton Dias. Este último, pelo ranking da minha sala, foi considerado um dos mais chatos entre os adolescentes. Com memórias dele e da cidade, parecia papo de velho. E jovem, em geral, não tem muita paciência para ouvir. Mas, eu era uma jovem diferente e me apaixonei por aquelas crônicas. O livro, de tanto reler e carregar para cima e para baixo, soltou as páginas e se abriu inteiro. Para aguentar até o dia da prova, meu pai reencadernou com cola e um pedaço da capa do sofá. A edição continua assim e foi uma das grandes inspirações para o meu primeiro livro, mais de 20 anos depois, o Cidades Invisíveis.
Hoje, sequer lembro qual deles foi escolhido para as questões da prova. Algumas dessas edições sumiram. Entretanto, resolvi reler alguns e chorei depois de adulta, por poder compreender a profundidade de muitas dessas obras. Laços de Família me bateu forte a emoção, porque com mais de 30, eu era mãe e mulher casada, sabia bem das epifanias doloridas que a Clarice soltava em contos como Uma Galinha.
Do mesmo jeito com Dora, Doralina, da Rachel de Queiroz, em que a mulher se decepciona com o amor, a família, viaja o Brasil com o teatro, encontra a paixão violenta e possessiva do Comandante e depois volta para o mesmo lugar de sua finada mãe. A cobra sempre mordendo o rabo. A maturidade faz a gente entender muito melhor certas coisas.
Depois desse ano, em que consegui aproveitar minha oportunidade grátis de entrar na universidade, passei a colocar a leitura como lazer independente de qualquer rotina. Se eu estivesse atolada de tarefas nas cadeiras da faculdade, levava um livrinho fino pra ler nas viagens de ônibus.
Quando comecei a trabalhar, iniciei o garimpo dos livros da minha biblioteca pessoal, que merecem muitas histórias ainda. E passei a roubar um tempinho na hora do almoço, assim como nas longas viagens para o trabalho ou o interior.
Com meus filhos, lia amamentando, enquanto o arroz secava, na hora de dormirem e fui driblando a falta de tempo, o que faço até hoje.Uma novidade que só aprendi depois dos 35 foi abandonar leituras. Nada de perder tempo lendo até o fim o que não me atrai. Se é diversão, leio o que eu quiser. E se não quiser, ninguém me obriga. Por hora, a leitura é isso: um exercício de relaxamento e rebeldia, que ajuda a encarar a rotina de obrigações.