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21 de março de 2025

“É impossível conhecer a história do Brasil do século 20 sem você conhecer a trajetória do Marighella”, defende o biógrafo Mário Magalhães

Mário Magalhães conversou com o OPINIÃO CE sobre os desafios de escrever e eternizar figuras históricas para o Brasil
Foto: Micaela Menezes/Porto Iracema das Artes

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Sendo um dos convidados para debater sobre memória, verdade e democracia em comemoração aos 10 anos da Escola Porto Iracema das Artes, o jornalista e escritor Mário Magalhães conversou com o OPINIÃO CE sobre os desafios de escrever e eternizar figuras históricas para o Brasil, além de enfatizar a importância da criação de um protocolo de intenções para se criar espaços de memória da ditadura no Ceará, assinado no encerramento das atividades de aniversário da Escola pelo Governo do Estado e Assembleia Legislativa. Mário é autor da biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras, 2012). O livro recebeu seis prêmios e já chegou à 9ª reimpressão. Foi adaptado para o cinema em filme dirigido por Wagner Moura. Escreveu “Sobre lutas e lágrimas: Uma biografia de 2018” (Record, 2019). Atualmente, o escritor está preparando, desde 2015, uma biografia de Carlos Lacerda (1914-1977), a ser publicada em dois volumes pela Companhia das Letras sem data de lançamento  ainda. Boa leitura!

1. Por que você escolheu Marighella como personagem do seu livro e qual a importância de se memorizar uma figura de luta para que ditaduras posteriores não se repitam?

Eu sou essencialmente repórter. Eu não sou historiador, nem cientista político. Sou um contador de histórias e a figura histórica do Carlos Marighella me permitia contar e reconstituir uma vida trepidante e, ao mesmo tempo, visitar 40 anos de história do Brasil e do mundo.Foi então quando eu pedi as contas da Folha de São Paulo em 2003 para escrever uma biografia.

O Marighella era um personagem sobre o qual eu já sabia algumas coisas, mas eu tinha convicção de que existia muito mais informação a ser desvendada sobre a trajetória dele, o que se confirmou. Agora, como eu sempre falo: eu botei o meu tijolinho na parede da memória do Marighella, mas outros vieram antes de mim e botaram os alicerces, botaram os seus tijolos, tanto no cinema quanto na na literatura de não-ficção, no jornalismo.

Eu trabalhei nove anos no livro, dos quais cinco anos e nove meses foram em regime de dedicação exclusiva. A trajetória dele me permite conhecer melhor o passado do Brasil e é um direito dos povos, a memória é um direito dos povos, saber o que ocorreu no passado para, de posse desse conhecimento, tomar com condições melhores, as decisões sobre os seus caminhos.

Eu não escrevi um livro a favor do Marighella, também não escrevi contra ele. Eu não julgo biografado, eu conto de maneira escrupulosa, o que ele fez, disse e, na medida do possível, sentiu e pensou. Agora, a opinião sobre o personagem vai depender da cabeça e do coração de cada leitora, de cada leitor.

2. Você biografou um personagem cuja história é marcada fortemente por ideologias, as que ele defendia consciente e firmemente; e as que combatia. Diante do biografado, o biógrafo precisa assumir uma posição ideológica?

Autobiografia são sempre suspeitíssimas porque a tendência do ser humano é de contar aquilo que lhe parece mais virtuoso e esconder o que parece menos. E, no caso das biografias, especificamente a biografia jornalística, pertence ao gênero jornalístico da reportagem.

As ideias do biógrafo acabam interferindo num relato, mas isso não significa que o biógrafo, o autor ou o repórter tenha que ficar dando opinião o tempo inteiro. Eu adoro conhecer histórias, não gosto de quem me diz o que eu tenho que pensar.

Agora, como dizia um amigo do Marighella, João Saldanha, “não sou filho de chocadeira”. Então, é óbvio que quando eu narro uma cena de tortura no ano de 1936, o Marighella foi torturado durante três semanas consecutivas do Rio de Janeiro. Numa cena de tortura, eu estou do lado do torturado de qualquer torturado e não do torturador. Imparcialidade não existe. Eu não digo, mas quando o Marighella está participando da expulsão do Partido Comunista de uma grande mulher chamada Patrícia Galvão, a Pagu, sob acusação, entre outras, de manter hábitos sexuais degenerados. É claro que eu não estou ao lado do Marighella, mas eu não preciso ficar dizendo isso para o leitor.

3. Você acredita que um trabalho como o seu com Marighella ajudará a quebrar essa “maldição do silêncio” principalmente pós-governo Bolsonaro, um político lido como fascista e que esteve à frente de um país que passou por uma ditadura militar tão violenta?

Carlos Marighella foi vítima desse pacto de silêncio, foi uma das grandes apostas da ditadura, uma das mentiras mais longevas da ditadura. A versão a respeito das circunstâncias da morte do Marighella que eu consigo provar no livro, que ele estava desarmado quando ele foi cercado por pelo menos 28 agentes da ditadura armados até os dentes. E quando de um lado você tem 28 pessoas armadas e de outro um homem desarmado, não há confronto, há execução.

Essa versão da ditadura demorou muito para ser desmontada. Houve um esforço da ditadura de apagar a memória do Marighella e também houve um empenho de determinados setores da esquerda brasileira de tentar fazer com que o personagem Carlos Marighella passasse a história como um irresponsável, aventureiro e porra louca. Pessoas mais antigas sabem do que eu estou falando e eu não quero falar agora, mas isso aconteceu.

Quando você conta uma história, você tira o protagonista da maldição do silêncio, expressão empregada pelo Jorge Amado, escritor e amigo de Marighella no PCB. Você contribui para que as pessoas conheçam um pouco melhor o seu passado. Mesmo assim, ele é um personagem maldito da história do Brasil. Eu nunca ouvi falar de Marighella na escola, nasci em 1964. A minha filha mais velha, que nasceu em 1990, nunca ouviu falar. A do meio que nasceu no ano 2000, nunca ouviu falar. E o caçula, que nasceu em 2007, nunca ouviu falar.

É impossível conhecer a história do Brasil do século 20 sem você conhecer a trajetória do Marighella. Contar a história do Brasil sem contar a história do Marighella, é contar uma história manca, está faltando um pedaço, e obviamente que a falta desse pedaço serve a determinadas ideias e interesses históricos, que são as ideias e interesses históricos contra os quais o Marighella combateu.

4. Neste dia 31, o Governo do Estado junto à Assembleia do Ceará, assinaram juntos esse protocolo de intenções Memória e Verdade na tentativa de criar lugares de memória da ditadura militar no Ceará. Como você enxerga isso ser aqui no estado, que já teve muitos presos políticos no período?

O Ceará é um estado historicamente um grande território de lutas. O Ceará, com esse protocolo, está dando exemplo para boa parte das administrações públicas do Brasil que preferem a comodidade de ignorar o passado. O esquecimento é amigo da barbárie, é direito dos povos conhecerem o seu passado, ter acesso à memória. O protocolo permite não somente que a sociedade possa decidir, de modo mais soberano, os seus destinos e também permite fazer justiça, porque memória e verdade têm de estar ligadas à justiça para que a história e a sociedade avancem.

Não basta saber quem foram as pessoas que torturaram e acabaram provocando depois a morte, como a de um grande cearense, o Frei Tito de Alencar. É preciso punir. É por isso que hoje, em todo o Brasil, agentes do estado se sentem muito confortáveis para transformar repartições policiais em centros de tortura e sair por espaços onde moram jovens, sobretudo negros e periféricos, e sair matando a torto e a direito por causa da impunidade. A impunidade é um grande combustível para que atrocidades voltem a ser cometidas. Então, a ideia de memória e verdade tem que estar vinculada à reivindicação por justiça. Essa eternização da impunidade é uma das maiores tragédias nacionais.

5. Você tem uma biografia chamada “Sobre lutas e lágrimas: Uma biografia de 2018, o ano em que o Brasil flertou com o apocalipse”, tem algum projeto cobrindo o período posterior, já da gestão Bolsonaro?

O meu próximo livro trabalho nele há 8 anos. Desde março, me dedico full time a uma biografia do Carlos Lacerda. É uma figura marcante da história, do jornalismo, da política e da literatura do país. Eu estou exclusivo na biografia. No dia primeiro de março deste ano, eu pedi as contas de tudo que eu fazia, inclusive, do meu trabalho como consultor do UOL como consultor de conteúdo. E desde então, eu estou me dedicando só a biografia do Carlos Lacerda, que vai sair dois volumes pela Companhia das Letras, agora não me pergunta quando eu nem sei.

6. O filme dirigido por Wagner Moura teve uma certa dificuldade em conseguir distribuir. No caso do livro, você encontrou resistência das editoras?

Não tive problemas com editoras. Foi um contrato assinado no ano de 2004. Aproximadamente 10 editoras me procuraram quando souberam que eu estava escrevendo uma biografia do Carlos Marighella. O filme do Wagner foi objeto de fato de censura, mas uma censura exercida de uma maneira não explícita. Nos anos de Bolsonaro nós tivemos um sem número de episódios de censura explícita. O então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, mandou aprender na Bienal do Livro uma história em quadrinhos porque havia um desenho de dois meninos se beijando na boca.

A embaixada do Brasil em Montevidéu cancelou um evento de lançamento de um livro porque era um livro crítico do Governo Bolsonaro. Isso é uma censura explícita. Nós tivemos no governo Temer uma peça de teatro na qual Jesus Cristo é uma mulher transexual. Essa peça foi proibida. Eles não usaram a expressão censura porque a censura é inconstitucional. No caso do audiovisual, em particular do filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, baseado no meu livro. O que houve foi uma série de decisões de organismos públicos para impedir que a produção do filme tivesse acesso a recursos financeiros.

No governo do Bolsonaro, houve episódios de censura, de fato, em exposições de arte, em eventos em torno de livros, de história em quadrinhos, de alimentos em formato erótico. Além de asfixia financeira de filmes por retenção de verba, perseguição a rappers, veto a grafites, peças de teatro com conteúdo incômodo ao poder, proibição a livre manifestações, festival de música e até em festa de São João. A doutora Nice da Silveira foi proibida de entrar no livro dos heróis e heroínas da Pátria, Carlos Marighella foi retirado de portal de órgão federal, também houve destruição de memorial de vítima de chacina, houve repressão a adoção de linguagem neutro na arte, na cultura e no pensamento. Isso foi o governo Bolsonaro e o governo Bolsonaro vai beber na história do Brasil.

 

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