O avanço do desmatamento e caça ilegal aumentam os riscos de surgimento de novas epidemias e pandemias, é o que revela uma pesquisa nacional, com participação da Universidade Estadual do Ceará (UECE). O estudo é uma iniciativa do Centro de Síntese em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (SinBiose), financiado pelo CNPq, com participação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de parceiros nacionais e internacionais sob a liderança da ecóloga Gisele Winck.
Hugo Fernandes, biólogo, mestre e doutor em Zoologia com pós-doutorado em Ecologia e professor da UECE, também integrante da pesquisa, destaca como a prática da caça de animais silvestres, presente no Ceará e em outros estados brasileiros, assim como o avanço do desmatamento, podem gerar um contato cada vez mais próximo entre o homem e animais portadores de zoonoses, relação que possibilita inúmeros riscos à saúde humana.
OPINIÃO CE – Como surge a pesquisa e com quais objetivos?
Hugo Fernandes – A pesquisa nasce da necessidade de respondermos com mais precisão algo que já vinha sendo levantado por alguns investigadores mundo afora. O Brasil oferece fatores de alto risco para o disparo de novos surtos, epidemias e pandemias de origem animal. Essa pesquisa tem dois objetivos: identificar quais são esses fatores e a importância de cada um, essa é a grande novidade; e quais locais dentro do Brasil são mais propícios para esses disparos.
Levantamos dados biológicos disponíveis na literatura sobre a riqueza de mamíferos silvestres em cada um dos estados brasileiros e associamos essa riqueza com levantamento dos patógenos de origem animal associados a cada espécie. Cruzamos os dados biológicos com fatores importantes para o disparo de novas epidemias, como, por exemplo, os dados de desmatamento. Também usamos outros dados, como de cobertura vegetal, distância entre as cidades, sem deixar de lembrar que essas informações não podem vir dissociadas dos dados de vulnerabilidade social. Cruzamos todas as informações, estatisticamente, para modelar quais os estados com maior possibilidade de disparo de novos surtos e quais os fatores mais importantes dentro dessa cadeia. Minha participação no estudo foi na investigação da relação entre a caça e o disparo de novas epidemias.
OPINIÃO CE – Quais os resultados obtidos?
Hugo Fernandes – A pesquisa traz dois pontos muito importantes. O primeiro é mostrar quais são os estados mais propícios. São eles: Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso. Estamos falando, então, de quase todos os estados da região Norte. O segundo ponto é indicar qual o conjunto de fatores para que isso aconteça. Entendemos que regiões com alta diversidade biológica, como é o caso da Amazônia, oferecem mais riscos. Só que isso não pode ser encarado de forma solitária. Quanto maior diversidade biológica, por consequência, maior a diversidade de patógenos. Isso é esperado. Quais são esses fatores? O desmatamento é um deles. Quanto maior o desmatamento, maior é o acesso a esses patógenos. Agora, uma coisa é chegar perto dos patógenos e outra é, de fato, ser infectado. Para isso é preciso o contágio, que pode ser via vetores, por exemplo, mosquitos; ou pode ser através do contato íntimo, mais próximo com o fluido dos animais. Esse contato ocorre sobretudo através da caça, no abate, preparo, no armazenamento, na comercialização, no consumo.
OPINIÃO CE – Quais os resultados obtidos em relação ao Ceará?
Hugo Fernandes – O Ceará aparece em um contexto de risco baixo para o disparo de novos surtos de epidemias e pandemias. Cabe lembrar que é um risco baixo diante dos dados que envolvem a Amazônia, por exemplo. Ou seja, em um efeito comparativo, o Ceará tem um risco baixo, o que não quer dizer que seja inexistente. Os fatores que colocam o Ceará dentro de uma zona de risco são os mesmos, o avanço do desmatamento, a caça de animais silvestres e, obviamente, o contexto da vulnerabilidade socioeconômica que, aqui no Nordeste e no Norte, precisam ser olhados com mais cuidado.

OPINIÃO CE – O que fazer para mitigar esses impactos?
Hugo Fernandes – Precisamos investir mais no monitoramento das zoonoses no Brasil e, inclusive, no Ceará. Precisamos ampliar a atuação de órgãos como a Fiocruz, além das secretarias estaduais. Isso envolve um investimento inclusive nas Pastas de Ciência. Precisamos falar da fiscalização dos crimes ambientais. Não é possível que toquemos nossas políticas públicas hoje sem a possibilidade do desmatamento zero. O desmastamento ilegal precisa ser zerado neste país. E também, é necessária a fiscalização para as atividades de caça, garantindo, obviamente, a alimentação de comunidades tradicionais que dependem do recurso.
OPINIÃO CE – Um suposto aumento da caça ilegal observado no Ceará durante a crise sanitária pode culminar em uma nova epidemia?
Hugo Fernandes – Não há dados disponíveis para a gente relacionar como responsabilidade esse aumento suposto da caça de animais silvestres durante a pandemia com o disparo de surtos. O que digo é que o fator é sim muito importante e preocupante. Ao invés de dar um exemplo da possibilidade, posso dar um exemplo do que é real. Há uma relação, inclusive dentro do estado do Ceará, de casos de hanseníase com a caça de animais silvestres, sobretudo a do tatu. O Mycobacterium leprae, que é o patógeno associado não só ao tatu, mas a outros mamíferos, é muito comum nas tocas de espécies de tatus que, no Ceará, são quatro, e também nos próprios indivíduos. Então, temos uma preocupante relação aqui no Ceará e no restante do Brasil, por exemplo.
OPINIÃO CE – O que você observa de avanços e desafios aqui no Ceará?
Hugo Fernandes – O Ceará tem melhorado bastante em relação às políticas ambientais, isso é inegável. Há um aumento no número de unidades de conservação, tivemos projetos ousados lançados nos últimos anos, como é o caso da lista de fauna ameaçada, do zoneamento econômico e ecológico, como é o caso do SIG Ambiental [Sistema de Informações Geográficas], que está dentro da Secretaria de Meio Ambiente. Temos o programa Científico Chefe, que hoje é coordenado pelo professor Luis Ernesto, da UFC. É de fato um avanço muito forte. Então, essas políticas são positivas, mas é evidente que ainda há muito o que fazer no sentido de fiscalizar os impactos, de monitorar os desmatamentos e de realmente termos uma economia, não só em nível de Ceará mas de Brasil, que coloque o meio ambiente em primeiro plano.