O Ceará registrou, somente neste ano, ao menos 236 casos de feminicídio. Os dados constam em dossiê apresentado pela coordenadora do Instituto Maria da Penha e advogada do Fórum Cearense de Mulheres, Rose Marques, em audiência pública nesta segunda-feira, 28. O debate foi promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado e cobrou a efetividade de políticas públicas sobre feminicídio de mulheres e meninas no Ceará. Na apresentação, Rose Marques lembrou que se não existem dados, é como se os crimes não fossem cometidos.
“Se não temos dados, negamos a existência desses crimes. E aí tudo o que afirmamos para a construção de políticas públicas acaba sendo deslegitimado. Existem movimentos como esse em outros países desenvolvendo um trabalho de pesquisa parecido, construindo dados e ferramentas para identificar casos de feminicídio no intuito de complementar as informações que muitas vezes são ignoradas nas qualificações desses crimes. Somente neste ano, até a data de hoje, tivemos 236 casos no Ceará“, apontou.
Responsável pelo debate, o presidente da comissão, deputado Renato Roseno (Psol), explicou que o feminicídio é uma qualificante do crime de homicídio quando este é praticado em razão da vítima ser mulher e ter relação de algum tipo com o agressor, mas há muito tempo os movimentos de proteção a mulher reclamam da inexistência ou especificação de dados sobre esses crimes. “Muitos desses homicídios não é classificado como feminicídio e para enfrentar esse tipo de violência é preciso ter dados”.
A vereadora de Fortaleza e deputada eleita Larissa Gaspar (PT), por sua vez, lamentou que, embora esteja garantida da Constituição, a Lei Maria da Penha enfrenta gargalos estruturais. “A (lei) Maria da Penha é uma potência de legislação não só em relação a punição dos agressores, que é necessária e deve ser mais célere, como também no combate à violência contra a mulher. Temos muito ainda a avançar na desconstrução do machismo e patriarcado, e essa ausência de dados acaba que vai na contramão de toda uma luta.”
Esfera social
A defensora pública Gina Kelly Pontes Moura externou sua preocupação com o ato da baixa ou nenhuma qualificação de crime de feminicídio quando a relação da vítima com o agressor sai da esfera doméstica para a social. “Isso só mostra a vulnerabilidade da mulher num contexto mais amplo e como os órgãos de justiça precisam aumentar a perspectiva na qualificação de crimes de feminicídios com ausência de relação íntima entre agressor e vítima”.
“Também temos visto que a luta dos movimentos permanece muito na questão da penalização, mas chamo atenção para o tratamento e acolhimento pós-violência da mulher e do núcleo familiar. O que o Estado tem oferecido para os filhos do feminicídio? Não só na educação, mas na saúde, sobretudo na mental, ou políticas de transferência de renda? Alerto toda a militância para não se restringir só à questão criminal”.
Representando a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), a delegada Eliana Maia Soares ponderou que a Lei Maria da Penha é considerada uma das três melhores na legislação mundial, mas, na prática, ainda muito violada. “A lei é perfeita, mas não é totalmente implementada pelos poderes. De fato, são mortes anunciadas, pois é muito difícil um feminicídio ocorrer isoladamente. E se essa mulher não tem a proteção do Estado e procura os órgãos e não encontra acolhimento, ela morre. Então o Estado é responsável, sim, principalmente por muitas vezes entender a violência doméstica como um problema menor. Além disso, aqui no Estado contamos com um efetivo pequeno, já inclusive solicitamos mais gente para a investigação, o que impacta também na qualificação dos dados”, avaliou.
A audiência foi encerrada com dois encaminhamentos direcionados à SSPDS. O primeiro seria o envio formal do dossiê de contra-dados sobre feminicídios no Ceará cometidos em 2022 ao secretário e o agendamento de reunião com o secretário da próxima gestão do Executivo estadual.