O plantio da mandioca, por não necessitar de uma grande quantidade de água, encontrou seu lugar no Semiárido nordestino para se desenvolver. As casas de farinha se espalharam no interior do estado para produzir, quase de forma artesanal, os seus derivados, como a própria farinha, a goma, o beiju, a tapioca e a massa puba. No entanto, com o avanço da industrialização este processo foi, aos poucos, se tornando cada vez mais escasso.
Em Crato, isso não foi diferente. O distrito do Baixio das Palmeiras, que fica a cerca de 12 quilômetros da sede do município, aproximadamente 20 casas de farinha estavam ativas. Atualmente, apenas uma se mantém de pé: a Casa de Farinha Mestre José Gomes, que completa 70 anos de funcionamento.
Erguida em 1953, o equipamento ainda mantém sua estrutura artesanal com prensagem manual e fornalha de barro, por exemplo. Mesmo assim, ficou muito próxima de se extinguir, já que passou cerca de 12 anos desativada, até ser doada para a Associação dos Agricultores Familiares Sagrada Família do Baixio do Muquém fez o seu resgate e colocou de volta para funcionar.
A ideia da comunidade em mantê-la ressalta uma particularidade: é uma das poucas que mantém a estrutura antiga no Crato. Com a doação pelo mestre José Gomes, a associação a mantém como um museu vivo, onde mostra na prática todo o processo que envolve a mandiocultura de perto. “De alguma forma, isso mantém a nossa origem, nossa memória. Se hoje as coisas são mecanizadas, automatizadas, aqui contamos a nossa história”, ressalta o presidente da Associação, o agricultor Assis Nicolau.
A iniciativa trouxe à Casa de Farinha o reconhecimento como como ponto de cultura do Município, em 2021. A partir disso, conquistou recursos pela Lei Aldir Blanc para reformar seu espaço e garantir sua manutenção pelos próximos anos. Hoje, cada setor está sinalizado, como os tanques de goma, o forno e a prensa, para que o visitante entenda melhor o passo a passo da produção.
E este trabalho de resgate tem funcionado. Em 2020, antes da pandemia da Covid-19, a casa de farinha recebeu 146 visitantes, incluindo estudantes universitários de estados vizinhos, como Rio Grande do Norte e Paraíba. Com o retorno das visitas, em 2022 chegou a 143 pessoas conhecendo o equipamento. Contudo, em 2023, nos seis primeiros meses já alcançou 170 visitantes, superando os períodos anteriores. Todos os números foram registrados em livro de presença. “Mas deve ser muito mais. Tem movimento sempre. Fizemos São João fora de época e deu muita gente”, pontua Nicolau.
FARINHADA
O ponto máximo será na celebração dos 70 anos da Casa de Farinha, onde acontece a tradicional farinhada. Este ano, está programada para acontecer entre 6 e 8 de outubro. Ao todo, este processo chega a envolver diretamente cerca de 30 pessoas. São cultivadores, arrancadores, carregadores, raspadeiras, cevadores, carregadores de água, lavadeiras, prenseiros e forneiros. “Vai ser uma grande festa para comemorar”, reforça o presidente da associação.
A expectativa é receber mais de 100 pessoas nos três dias de farinhada, entre pesquisadores, clientes e os próprios moradores que trabalham de forma voluntária. A venda de beijus e tapiocas, em maioria por encomenda, é revertida em recurso para a associação. “Mais importante é colocar na mente das pessoas que o plantio da mandioca ainda funciona. É uma cultura resistente à seca, que gera emprego, oportunidade e torna nossa comunidade referência”, acredita Assis Nicolau.
IMPACTO
Além de recuperar um equipamento importante, a ideia dos moradores é reavivar o plantio da mandioca, muito presente na memória coletiva. “As farinhadas tinham toda uma tradição de sentar, raspar, cantar e se transformar numa grande roda de conversa”, lembra Assim. Hoje, o cultivo ainda sobrevive no Baixio das Palmeiras muito em função da massa puba, que exige um trabalho maia simples de produção: coloca em molho por cinco dias, espera sua decomposição e lava.
O agricultor José Cícero Braz, conhecido como Zé de Téta, que na época da farinhada assume o importante papel de forneiro, explica que o sucesso também é fruto do trabalho do plantio que começou há mais de um ano. “A mandioca é ótima, porque tudo se aproveita. Até a casca alimenta nossos animais. Da farinha, se secar, mistura com a ração”, exalta.
Antes da decadência da mandioca, os agricultores do Crato trabalhavam diariamente nas casas de farinha de maio a dezembro. Apesar de admitir que esse tempo de fartura não retornará por causa da mecanização, Zé de Téta celebra a manutenção do equipamento do Baixio da Palmeiras. “As novas gerações não tiveram contato com isso. É um aprendizado e representa nossas raízes”, completa.