O Campo de Concentração do Patu, em Senador Pompeu, foi oficialmente tombado na última segunda-feira (8). Neste ano, o espaço, que integra uma parte importante da história do Ceará, completa 90 anos, e foi aprovado como patrimônio de forma unânime no Conselho Estadual de Preservação de Patrimônio Cultural do Ceará (Coepa). Para dimensionar a importância do tombamento, o OPINIÃO CE conversou com a coordenadora de patrimônio do Ceará, Jéssica Ohara, que participou diretamente do processo.
OPINIÃO CE – O que é o Campo de Concentração do Patu, fazendo um pequeno histórico dele e sua influência?
Jéssica Ohara – O campo de concentração fica na zona rural de Senador Pompeu, a cerca de três quilômetros do centro da cidade. Até o campo havia uma estação de trem quando ele foi construído para ser uma barragem, pelos ingleses, mas a obra foi descontinuada em 1923 e aquele espaço foi reutilizado como campo de concentração, em 1932. É uma área bem grande, perto do que hoje é a barragem do patu. Ele não é difícil de localizar. Na verdade, é tão grande que é difícil de conhecer de uma vez só.
Hoje, temos contabilizados 19 casarões, com o Casarão da Inspetoria, que é o que fica no ponto mais alto; as caixas de pólvora; as casas que eram dos engenheiros; o antigo hospital, que nunca foi terminado. E também temos algumas ruínas que a gente tá começando a descobrir quais suas funções. Tem uma que pode ter sido um refeitório. A gente acha que pode achar mais coisas, sem contar os próprios vestígios das pessoas que foram concentradas naquele local. Como não cabia todo mundo nas casas de alvenaria, elas ficavam em barracões, até mesmo embaixo de árvore.
OPINIÃO CE – Qual o conceito de um campo de concentração no interior do Ceará?
Jéssica Ohara – O do tipo do Ceará seria realmente a ideia básica de uma concentração, de uma contingência de pessoas para que não cheguem a determinado local ou para que fiquem presas nesse espaço por um determinado motivo. Ele, teoricamente, não era um campo de extermínio, mas também pode ser considerado um campo de trabalhos forçados. A saída dessas pessoas de lá só era permitida quando para trabalhar em obras do Governo. As obras não eram remuneradas, mas pagas com comida.
No Campo do Patu, os dados ainda são um pouco confusos porque a documentação oficial foi parcialmente destruída e outra parte perdida, mas é possível estimar que 20 mil pessoas tenham passado por lá.
OPINIÃO CE – Com base nos depoimentos revelados, como era a rotina nesses locais?
Jéssica Ohara – A rotina, pelo que a gente conversou com um dos sobreviventes, o Joaquim Barbosa, que infelizmente faleceu neste ano, e também em relatos de outros sobreviventes, era bastante simples. As pessoas chegavam e eram impedidas de sair. Durante o dia, quem podia trabalhar era levado para as frentes de trabalho, mas também não tinha espaço para todo mundo. Tinha um determinado horário do dia que as pessoas iam pegar a comida que, pelos relatos, era distribuída no Casarão da Inspetoria.
Era feita uma fila, um dos momentos de maior controle porque as pessoas entravam, uma a uma, pegavam a comida e levavam de volta. Cada pessoa representava um grupo de familiares. Pelo que os sobreviventes falam, não se tinha interação, eles eram vigiados. Também existiam subcategorias de cadeias dentro do campo onde os “presos” mais difíceis eram colocados. Muita gente conseguiu fugir, mas os espaços eram bem escondidos. Além disso, havia uma mobilidade muito grande entre os campos. Se estava precisando de gente para trabalhar em Fortaleza, por exemplo, determinado grupo era mandado.
OPINIÃO CE – Qual a importância do Patu como patrimônio do Ceará?
Jéssica Ohara – O primeiro ponto que a gente pode começar é pela justiça e pelo direito que as pessoas têm à memória. Em algumas dessas pesquisas a gente via que as pessoas tinham vergonha. Até hoje, alguns sobreviventes não falam sobre o assunto. Você dá direito às pessoas saberem que isso aconteceu, que elas têm o direito de pedir justiça por isso e para que isso não se repita. Parece uma coisa simples, mas as pessoas precisam ser constantemente lembradas que crimes terríveis foram cometidos e que isso não pode se repetir.
Para a história do Ceará, para a sociedade atual, é uma forma de se encontrar com o mecanismo que criou o estado que é hoje. A gente encontra quais foram os problemas e como as pessoas os enfrentaram. Falamos muito do campo, mas também precisamos falar da resistência daquelas pessoas, da força dos que conseguiram sobreviver. O que a gente pode aprender com isso para que essa situação nunca mais seja vista como necessária? Não podemos pensar naquilo só como um edifício arquitetônico.
OPINIÃO CE – Juridicamente, no que consiste o tombamento?
Jéssica Ohara – Foi um processo atípico, porque demorou muito. O primeiro pedido [de tombamento] foi em 1996. Ele teve, no total, cinco processos de pedidos até que a gente conseguiu, em 2017, fazer o primeiro parecer, que já tinha uma equipe montada. Em 2021, conseguimos dar continuidade com uma equipe maior, que inclui arquitetos, engenheiros, porque é uma área muito grande. O tombamento dá uma espécie de titulação àquele bem e ele é oficialmente reconhecido como patrimônio histórico.
A gente vai poder desenvolver projetos de preservação e de salvaguarda para manter esse patrimônio de pé. Agora, depois da reunião do Coepa, estamos organizando a documentação, as notificações para que seja assinado o decreto, que é uma parte importante. Depois disso, vamos começar a pensar nos planos comunitários, junto com as pessoas. Tem uma militância antiga que luta pelo tombamento. Já no ano que vem, queremos começar a trabalhar os projetos. O que está mais desenvolvido, junto com a Prefeitura, é de um memorial na Casa da Inspetoria, trabalhando no espaço a recepção tanto de pesquisadores como de turistas.
Foi conquistada uma emenda parlamentar e, neste ano ainda, começará a parte de restauração da cobertura, que está muito prejudicada, e ano que vem começa realmente a parte museal.
OPINIÃO CE – O Ceará teve outros espaços como o do Patu. Qual a situação dos demais?
Jéssica Ohara – A época do auge é 1932. A maioria foi desativada em 1933, com a volta das chuvas. Todos os outros campos, hoje, são localizáveis. Por exemplo, em Fortaleza a gente sabe que teve um onde ficavam determinadas fábricas. Ele é localizável, mas já não há mais vestígios do campo naquele lugar. Então, em todos os outros campos a gente não encontra mais vestígios, pelo menos até agora não se encontrou. O campo do Patu é o único, até aqui, que mantém as estruturas e que foi pouco habitado, não teve muita especulação imobiliária, nem muitas obras no lugar. Tem muita coisa preservada.
OPINIÃO CE – Quais pontos você destaca nesse processo?
Jéssica Ohara – Acho que esta é uma vitória também do município, são pessoas que foram muito participativas, militantes pelo patrimônio. Que todos tenham interesse por esse patrimônio, que possam ir lá conhecer. Ainda não está nas melhores condições para receber grandes quantidades de turistas e de pesquisadores, mas dá pra conhecer. O mais próximo de uma memória sensível e que já estava tombado pelo Estado é o Caldeirão. Também há muito trabalho a ser feito lá de resgate dessas questões, do massacre que aconteceu, e tem uma relação com a seca.
Muita gente que passava dificuldade com as secas foi para o Caldeirão e muita gente do caldeirão doou alimentos aos flagelados na época.