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18 de janeiro de 2025

“A tarefa principal é ajudar o governo a resolver o problema da fome e da miséria”

Primeiro sem terra e assentado da reforma agrária eleito para o Legislativo cearense, Missias do MST defende uma política de combate à fome
Foto: Yuri Juatama/Divulgação

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Com quase 45 mil votos, os cearenses elegeram o primeiro assentado de reforma agrária a ocupar o cargo de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Ceará. Integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Manuel Missias Bezerra (PT), que traz no nome a representação do movimento que o construiu como liderança – Missias do MST – destacou, em entrevista ao OPINIÃO CE, o combate à fome e à miséria como principal bandeira de seu primeiro mandato, a partir de fevereiro de 2023.

Chegando à Casa de “cabeça erguida”, como conta, orgulhoso, Missias espera carregar consigo as demandas “do povo mais pobre”, destacando a importância da luta pela terra e a valorização do homem e da mulher do campo como principais bandeiras na busca por um desenvolvimento econômico sustentável e socialmente justo no Ceará.

OPINIÃO CE- Gostaria que contasse um pouco da sua trajetória dentro do MST.

Missias do MST – A minha entrada no MST se deu pela necessidade dos camponeses, no ano de 1993, na qual meus pais moravam no município de Crateús, em um período muito difícil, de muita fome, de muita seca, de muita necessidade do povo do campo por não ter a terra para trabalhar e viver dignamente. Conhecemos o MST e, na oportunidade, fizemos uma ocupação na Fazenda Serrote, em Crateús, onde nossa família morava. Fomos convidados a acampar e ali, eu, com 11 anos de idade, tive a oportunidade de conhecer o movimento que lutava por terra, por reforma agrária e por justiça social. A gente resistiu e conquistamos a fazenda que hoje chamamos de Assentamento Palmares, onde tenho muito orgulho de ser assentado, de morar com a minha família, com meus pais, com meus irmãos. Desse período para cá, fui fazendo parte da militância do MST. Depois, fui para a direção, fui designado para viajar a outros países para conhecer outras experiências, para fortalecer o nosso movimento, e me formei em administração de empresas no Programa Nacional de Educação de Reforma Agrária, em uma turma do MST em Minas Gerais. Me dediquei a cuidar da parte da produção do MST, onde nós temos, hoje, um trabalho em todo o estado do Ceará na organização da produção que envolve as agroindústrias. O movimento tem essa grandeza que está espalhada em 66 municípios do Ceará, com uma base de mais de 250 assentamentos que o MST organiza.

OPINIÃO CE – Sua campanha contou com cerca de 300 comitês populares em assentamentos da reforma agrária no Ceará. Como foi construído esse movimento e o que você traz, desse momento de campanha, para o seu futuro mandato?

Missias do MST – A nossa campanha foi muito bonita e muito organizada porque ali estava o sentimento do povo pobre do nosso Estado, especialmente do MST e mais de 10 movimentos que se somaram conosco na campanha para que a gente pudesse ocupar o parlamento e eleger o primeiro sem terra, filho de agricultor e assentado da reforma agrária. Então, foi uma campanha que fizemos de forma muito organizada, por não ter estrutura, por não ter recursos, por não ter apoio de nenhum prefeito. Foi uma organização popular. Essa é a importância dos 300 comitês, com mais de trezentos militantes envolvidos diretamente na nossa campanha, onde toda a nossa base, dos movimentos e assentadas, acampadas, direções dos outros movimentos se envolveram. Posso afirmar que foi uma ‘campanha povão’, feita com muito sentimento de amor, com muita esperança de a gente poder garantir essa vitória. A gente sempre falava, na nossa campanha, que não era uma campanha do indivíduo, mas uma campanha coletiva, uma ideia que contagiou todo nosso povo.

Foto: Yuri Juatama/Divulgação

OPINIÃO CE – Como estar dentro do MST pode contribuir para a luta dos movimentos sociais na Assembleia?

Missias do MST – O MST do Ceará tinha o entendimento de que nós não deveríamos lançar candidatos aqui porque nós sempre tivemos os deputados amigos aliados ao MST, a exemplo do nosso deputado Elmano de Freitas [eleito governador]. Mas aproveitamos a oportunidade, dado que o deputado foi convidado para disputar como governador, e lançamos nossa candidatura. Mas esse é um debate que o MST vem fazendo não só no Ceará. Nós tivemos sete deputados eleitos no Brasil neste ano, tanto deputados federais como estaduais. Para nós, é muito importante ocupar esse espaço e compreender que a classe trabalhadora pode estar ali. A gente sabe que a responsabilidade é muito grande. Tenho compreensão de que, ao representar hoje o MST, os movimentos do campo e da cidade, nós temos uma tarefa, que é levar o sentimento do nosso povo, que sempre foi humilhado, que sempre foi explorado, que nunca foi ouvido na maioria das suas pautas, de estar presente e elevar essa mensagem, levar o nosso sonho, as nossas esperanças, os nossos projetos. Acima de tudo, romper essa ignorância, esse preconceito que sempre tiveram com os mais pobres e, principalmente, com os movimentos sociais.

OPINIÃO CE – E quais as principais demandas hoje e como o senhor pretende pautar esses temas na Casa?

Missias do MST – Os movimentos e a classe trabalhadora pobre precisam ser respeitados, sendo vistos de um jeito diferente e não apenas como massa de manobra ou como pessoas que não têm importância na sociedade. [É necessário] Romper os preconceitos, a discriminação sofrida do nosso povo, historicamante, principalmente os povos indígenas e os povos quilombolas, que até hoje não têm suas terras demarcadas; principalmente a juventude preta, os negros do nosso País, do nosso Estado, que sempre foram discriminados pela cor da sua pele, que não tiveram oportunidade de estar em espaços de poder para decidir os rumos do seu povo e do seu País.

Também penso que nós temos que ter como tarefa principal do nosso mandato ajudar o governo a resolver o problema da fome e da miséria que atinge o nosso povo. É inadmissível termos pessoas hoje que não têm um prato de comida para merendar, almoçar e jantar em um país tão rico, de pessoas tão trabalhadoras. Também é inadmissível que as pessoas não tenham casa para morar, que tenham que ir para as ruas com suas famílias e não tenham uma referência de um lar para construir. Penso que nós temos que ter trabalho, emprego e renda para o nosso povo, principalmente para a nossa juventude, que tem a oportunidade de ter seu espaço de trabalho. Trabalho é uma coisa que precisa ter tanto no campo como na cidade. Como também é muito importante a garantia da água no semiárido. Não admitimos que as pessoas, em pleno século XXI, dependam de carro pipa e água insalubre, água totalmente inapropriada para o consumo humano. É a mesma coisa com a democratização da terra. Não se combate a fome, a miséria no campo hoje e não se garante o alimento saudável, de qualidade, para quem está nos centros urbanos da cidade, se não tivermos a democratização da terra, a reforma agrária. São esses temas tão necessários que a gente precisa levar para o debate.

OPINIÃO CE – Agora no início de dezembro, o governador eleito Elmano se reuniu com representantes do Agro cearense para falar sobre projetos. Na sua avaliação, como manter o diálogo com esse setor e como será seu posicionamento, na Alece, nas pautas que abrangem essa temática

Missias do MST – Compreendo que Elmano é o governador de todo o povo cearense. Ele vai ter que dialogar com todas as pessoas que, eventualmente, venham procurar o seu governo para tratar de questões para cada segmento. Eu, particularmente, vou defender a reforma agrária, que o governo garanta políticas que venham melhorar a vida do povo mais pobre do nosso Estado. Entendo que o governador Elmano tem que olhar para aqueles que mais precisam. Tratar, por exemplo, da questão da fome, que atinge milhares de famílias do nosso Estado. Hoje, quem tem a capacidade de ajudar e fortalecer é quem é responsável por 70% do alimento que chega ao povo brasileiro. Não é o agronegócio que garante o alimento do povo pobre do nosso Estado e nem do nosso Brasil. Como exemplo, podemos ver, agora na pandemia, quem realmente se solidarizou, quem realmente deu milhares de toneladas de alimentos para o povo mais pobre do nosso Estado. Foi a agricultura familiar camponesa, foram aqueles realmente menores, aqueles que têm mais dificuldade, inclusive, para garantir o crédito, assistência técnica, garantir as políticas necessárias. Penso que o governador Elmano tem que ter um olhar especial para a população mais pobre e fortalecer aqueles e aquelas que realmente têm um compromisso diretamente com o povo mais pobre do nosso Ceará, dando as condições necessárias para que possamos produzir.

OPINIÃO CE – Em abril, o Governo anunciou um pacote de R$ 58 mi até 2024 para a universalização da regularização fundiária no Ceará, um dos maiores programas para o setor no Estado. Na sua avaliação, qual a importância desse tipo de iniciativa e, para além desse programa, quais gargalos ainda enfrentamos nesse setor?

Missias do MST – A questão da regularização é muito importante, principalmente para os pequenos agricultores espalhados em todo o Ceará, porque te dá uma garantia, um documento que você pode ir ao banco, receber um crédito, que você deixa para as gerações futuras. Então, isso é algo muito importante que o Estado tem que fazer. Mas, mais do que garantir a regularização fundiária, o Estado precisa pensar na desapropriação de terras improdutivas, em adquirir terras para aquelas famílias que não têm. A regularização é importante, é necessária, mas também é muito importante garantir, através da compra, da lei de terras, que temos no Ceará, ou arrecadar as terras da devolutas, as terras que hoje pertencem ao Estado, e passar para as famílias que querem produzir. Penso que a tarefa hoje do Estado, com essa quantidade de recursos, é fazer assentamentos da reforma agrária, garantir as estruturas necessárias para aqueles que estão sem terra, que não podem regularizar sua situação porque não tem a terra, mas que estão no campo.

Foto: Yuri Juatama/Divulgação

OPINIÃO CE – O senhor foi eleito com 44.853 votos como deputado estadual. Como o Missias do MST chegará à Assembleia Legislativa?

Missias do MST – Vou chegar à Assembleia Legislativa com a cabeça erguida, com o sentimento de que nós fizemos uma campanha muito bonita, uma campanha muito mística, muito animada, conduzida pela militância dos movimentos do nosso Estado e por pessoas comprometidas com a classe trabalhadora do campo e da cidade, e com pessoas que realmente querem que o nosso mandato seja popular. É assim que vai ser durante todos os quatro anos. Cabeça erguida porque fizemos uma campanha limpa, com muito diálogo, com muito trabalho de base, com muita formação, inclusive, compreendendo a importância do voto. Em nenhum momento nós roubamos a consciência de ninguém. As pessoas votaram acreditando na ideia, no projeto, nas organizações que estavam ali sendo representadas. Chego na Assembleia com muito entusiasmo de poder representar o nosso povo e tudo aquilo que recebi na campanha. Foi uma campanha curta, de 45 dias, na qual tivemos votação em 182 municípios, quase 45 mil votos, sem ter que gastar um centavo. Nós fizemos uma campanha diferente, com muito amor, no sentimento de esperança que foi de eleger um deputado sem terra, mas também um presidente, um governador e outros deputados que pudessem fortalecer o nosso projeto da classe trabalhadora.

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