Combater o racismo no Ceará é obrigação e reparação histórica, principalmente quando em 2023 o Governo do Estado aplica, em seu plano de governo, a diretriz de combate ao racismo. Mulher negra, Maria Zelma de Araújo Madeira está à frente da Secretaria de Igualdade Racial, a Seir, é graduada em Serviço Social, mestre e doutora em Sociologia. A secretária conversou com o OPINIÃO CE e contou os detalhes dos desafios para os próximos quatro anos no âmbito da política de enfrentamento ao racismo.
Madeira pretende interiorizar a pauta em todos os municípios, com a criação de conselhos e leis que promovam a inclusão, o trabalho e, sobretudo, o reconhecimento da população negra no Ceará. A população declarada preta aumentou no Ceará, entre 2012 e 2018, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O índice passou de 2,9% para 5,3%, no período analisado, mas, ainda assim, é o menor dos estados do Nordeste.
Na região, a maior participação de pretos ocorre na Bahia (22,9%) e no Maranhão (11,9%). O índice de 5,3% no Ceará representa uma população de quase 480 mil pessoas, segundo o Instituto. A maior população no estado é de pardos, que engloba 65,7% dos habitantes – cerca de 5,9 milhões de cearenses. Pretos e pardos englobam a população negra.
OPINIÃO CE – Qual é a importância da conquista da criação da Secretaria de Igualdade Racial para o Ceará?
Zelma Madeira – É de grande relevância a criação da secretaria porque nós trabalhamos com a pauta do combate e superação do racismo. É uma pauta específica que tem uma abrangência muito grande e, se fosse colar em outra pasta, diluiria. Nós apostamos nesta pauta do enfrentamento às desigualdades raciais. Um dos eixos da nossa formação social brasileira é a raça. E não estou falando da raça em termos biológicos porque a gente sabe que não tem sustentação, mas raça no sentido político, no sentido histórico e no sentido social porque somos uma sociedade racializada: uma sociedade que distribui benefícios e desvantagens entre os grupos sociais. É o nosso desafio: garantir o enfrentamento às desigualdades, a superação do racismo como problema social. Embora o racismo aconteça no âmbito das relações interpessoais, mas ele é sempre estrutural. Então, ele carece de políticas públicas.
OPINIÃO CE – Como você vê as políticas públicas do nosso estado no combate ao racismo?
Zelma Madeira – Na sociedade brasileira, a pauta da questão racial foi por demais desprezada: pela grande mídia, pela sociedade, pelos órgãos de justiça e pelos economistas. É algo que a gente precisa trazer à tona, que precisa ter a transversalidade, ter orçamento. No Ceará, por exemplo, já conseguimos falar que no Ceará tem indígena, povos de comunidades tradicionais, negros, povos de terreiro, ciganos e quilombolas. Eu acredito que a insistência de política de reconhecimento, atravessadas pela SDA, como o inventário dos povos indígenas.
Onde estão, quantos são, o que querem. Assim como os quilombolas e os dos povos de terreiro, feito em 2022. Esse é o primeiro passo, é reconhecer uma diversidade étnica no Ceará. Isso precisa chegar com a máquina pública – que é o estado – para chegar para a sociedade civil. São povos que edificaram e edificam, pela via do trabalho, o Estado. O Ceará é marcado por uma população em que 5% se autoafirma preta, mais de 65% são pardas, e que para o IBGE, são os que formam a população negra. Eu vejo isso como um avanço. Ainda tem que andar, mas a gente já começa a bater na tecla de que precisamos do reconhecimento étnico, justiça e desenvolvimento.
OPINIÃO CE – Em que sentido a secretaria de igualdade racial pode ajudar a transformar a realidade de combate ao racismo em outras secretarias? É possível haver essa interrelação?
Zelma Madeira – Nós temos que educar as pessoas no atravessamento, seja na SAP com projetos produtivos, seja na Seduc – com a implementação da Lei 10.639/03 ou da 11.645/08. Outro ponto que gostaria de comentar é sobre a Justiça. Atualmente, nós temos a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial (Decrin), que opera com a possibilidade de fazer um B.O, uma polícia que trabalha numa delegacia específica para não diluir novamente em outras delegacias. Sabemos que todas as vezes que se mexe com o tema de combate ao racismo as pessoas não ficam confortáveis.
A sociedade não tem sequer unanimidade de que é racista. Então, todas as vezes nós vamos despertar: quando a gente fala de políticas de promoção de igualdade racial, nós vamos ter pessoas que acolhem, mas nós vamos ter muito opositor porque a nossa formação social brasileira afirma que nós não temos racismo, que foi algo do passado e da escravidão. Nosso foco sempre será tensionado. Dentro desse contexto, ter uma secretaria para esse tema é uma decisão política. A Secretaria de Igualdade Racial tem um grande desafio de se ter uma agenda própria e uma agenda transversal e intersetorial. Estamos criando o programa Ceará Sem Racismo para que possa ser visto em todas as secretarias e o que elas estão fazendo pela igualdade racial.
OPINIÃO CE – Que caminhos devem ser tomados para que secretarias como as da igualdade racial não fiquem tão à mercê de gestões específicas?
Zelma Madeira – Para além de haver relações intersetoriais com outras secretarias sobre o tema, é preciso ter diálogo e articulação – que é uma decisão de governo – para um orçamento sensível à raça. Se criamos essa secretaria, há um interesse de que esse tema atravesse a máquina, todas as políticas e todas as pautas. Somos esperançosos de que possamos ser prósperos. No plano de governo do governador Elmano de Freitas e de Jade Romero, a 5ª diretriz é de combate ao racismo.
Eu digo isso porque eu venho acompanhado todos esses anos da política de igualdade e nunca vi um plano de governo que trabalhe diretamente com o tema. E é justamente essa diretriz que dará sustentação para uma agenda transversal. Além disso, é preciso fazer a interiorização da política racial. São poucos os municípios que têm o famoso “CPF da política”, que são os conselhos, um órgão especializado e um plano de governo. Essa também vai ser a nossa aposta, de viajar para os interiores para explicar a importância deste tema. Uma das vias é o selo Município Sem Racismo.
Outra pauta importante são as políticas de ações afirmativas, como as cotas raciais nos concursos públicos e nas seleções públicas. Nós vamos monitorar, acompanhar e ajudar as instituições no momento da formulação do edital para as seleções para que nós possamos efetivar a política de cota racial. Com a Seir, nós reafirmamos o papel de qualificar, cada vez mais, a Lei estadual 17.432/21.
OPINIÃO CE – Como vai ser o trabalho com os gestores nos municípios em relação à pauta racial? Como tem sido feito esse direcionamento que inclusive espelha o ministério de igualdade racial no Governo Lula?
Zelma Madeira – Nós queremos dar todas as condições para que cada município crie um órgão, com um conselho que tenha um plano de combate ao racismo e de combate a desigualdade. Nós vamos continuar fazendo as visitas institucionais aos municípios com o prefeito e todo seu staff. Pedimos também para chamar os movimentos sociais que estão a nós vinculados, fazemos reuniões e damos os caminhos de como se cria esses órgãos. Nosso papel é coordenar e ajudar nesse processo. Há de ter essa capilaridade dos municípios. Se a gente caminha junto com a articulação do Ministério de Igualdade Racial, nós vamos fazer com que mais municípios faça a adesão aos programas de políticas de igualdade racial. Antes, a gente só podia se virar com a gente mesmo, antes não existia nem esse tipo de ação.
O racismo é um fenômeno planetário contra os afrodescendentes e cada território vai ganhando algumas peculiaridades. Por exemplo, no Ceará é dizer que não existe negro. E isso é um discurso ideológico que esconde relação de poder, mas o Ceará tem negro, tem indígena, tem povos de terreiro, tem essa diversidade. E tudo começa com o reconhecimento, por isso fizemos a campanha “Ceará Sem Racismo – Respeite minha história, respeite minha diversidade”. Eu quero ser contada, eu quero ser escutada. O racismo tem prejudicado inclusive às pessoas que sofrem com ele a acessar trabalho. Trabalho é garantidor de identidade e é tudo que nós precisamos.
OPINIÃO CE – Na sua avaliação, os governos do Ceará tardaram trazer essa pauta e transformar isso numa pasta? Comente.
Zelma Madeira – Eu acredito que criar uma pasta depende de uma vontade política, mas depende também das condições. É preciso entender da conjuntura e da estrutura. No aspecto histórico, há sempre em um estado o abandono ou desprezo da questão racial e a questão conjuntural, que é do tempo presente, é marcada por essas crises, principalmente as políticas, como o aumento do autoritarismo e do neofascismo. Eu não posso ler a atitude de um governante, de abrir ou fechar uma pasta, sem eu fazer uma relação entre estrutura e conjuntura.
A estrutura nunca foi favorável para nós e essa conjuntura que nós estamos vivendo está acontecendo tardiamente. Todas as vezes que a nossa pauta não ganhou lugar próprio ela se dissolvia e com isso é mais difícil se ter políticas mais estruturais. A Seir é resultado da experiência governamental que vem desde 2010, do que foi que deu certo e do que não deu.
OPINIÃO CE – Sabemos que nos últimos anos houve um aumento de crimes raciais principalmente em falas políticas de políticos mais reacionários. A secretaria pode monitorar isso?
Zelma Madeira – Nós temos a função de ser observatório e termos esses dados reunidos, todos eles, para que a gente possa construir índices e alcançar um equilíbrio racial. São vários dados que estão espalhados que nós precisamos reunir para que a gente possa dar transparência e fortalecer com políticas públicas a partir da informação. Tudo isso é uma dimensão de monitoramento e de agregação de dados para que nós possamos ter os indicadores para que se diminua esses crimes racistas. Há a ignorância que curamos a partir dos processos educacionais, mas nós vemos que tem alguns casos que não são ignorância, é realmente discriminação e crime. Para resolver isso, é pelas ações repressivas acessando a delegacia.