É entre lágrimas que escrevo essa crônica. Não sei se pela trilha sonora, do concerto número 2 para piano do Sergei Rachmaninoff ou mesmo da dor que eu reavivei por lembrar que minha Estação João Felipe não existe mais. Não com seu uso de antes.
Passei por ela faz uns quinze dias e, cercada de tapumes, ela estava sem o telhado. Senti essa dor fina quando soube que o trem tinha feito sua última viagem até lá, há alguns anos, quando anunciaram que teria outro uso, como um grande equipamento cultural.
Assim como para muitos cearenses, que viriam a ser ilustres ou não, a centenária Estação Ferroviária João Felipe foi minha porta de entrada para Fortaleza. Como já disse aqui, eu sempre morei na Região Metropolitana, no município de Caucaia. Meu destino, por mais de 20 anos, foi a última parada antes do fim da linha na Caucaia, a estação Araturi.
Daria para vir pra Fortaleza de ônibus? Sim. Mas não foi essa a escolha da minha turma de amigos. Acredito que até hoje o trem seja bem mais barato que o ônibus. Nos meus tempos de adolescente, o preço chegava a ser três vezes menor. E assim, numa tarde de não sei qual dia da semana, eu viajei sem meus pais de trem para comprar folhagens para os arranjos florais que eu estava aprendendo a fazer. Fui até a também centenária Cadeia Pública de Fortaleza, onde funciona a Encetur, melhor lugar para encontrar esse tipo de produto. Esse belo lugar também fazia parte das minhas idas ao Cine São Luiz, tempos depois, porque a mãe de um dos integrantes da minha turma de amigos trabalhava lá.
Em 1996, os trens não tinham ar condicionado, obviamente. O projeto do Metrofor só seria anunciado no ano seguinte. Os trens tinham vagões ainda dos anos 1970. Muitas portas não fechavam mais. Outras, sequer existiam, o que facilitava a entrada das temidas pedras, arremessadas por crianças e adolescentes que moravam próximos dos trilhos.
Nessa época, uma legião de pessoas usava o trem para garantir o sustento. Pedintes de todas as idades, vendedores de jujubas, pastilhas, bulins e até de pomadas medicinais dividiam espaço com a multidão de usuários do transporte público, além de pregadores do Evangelho de várias denominações e alguns artistas populares.
Os principais artistas eram dois deficientes visuais, que atuavam separadamente. Uma mulher que tocava flauta. O outro, um homem que cantava, tocava gaita e pandeiro. Ambos estavam sempre atualizados dos sucessos do momento, mas também utilizavam muito o Roberto Carlos no seu repertório. Depois que esse tipo de show foi proibido nos trens, os dois migraram para os ônibus. Os que eu usava, principalmente. E de certa forma ainda fizeram parte do meu cotidiano por vários anos, como se fosse para que eu não me esquecesse disso.
Nos meus tempos de escola, quando estudei no Colégio 7 de Setembro, só usava o trem para o lazer. O ônibus me dava mais conforto porque me deixava na porta e tinha um intervalo menor entre as viagens, o que evitava atrasos. Já na faculdade e, depois, como repórter, o trem foi o meu principal meio de transporte. Meu primeiro estágio era quase vizinho à antiga estação, na Delegacia do Trabalho. Foram talvez mais de dez anos de viagens diárias.
Eu conseguia enxergar a magia diferente que tinha aquela Estação. Para a maioria das pessoas, o desconforto era o ponto principal. Tenho certeza de que a maioria só escolhia o trem por ser mais barato. Quem andou de trem por aqui certamente não se esquece de ser praticamente vomitado pela multidão para dentro do vagão assim que as portas se abriam e nem da corrida em busca de um lugar nos bancos desbotados, seguida de uns sorrisos moleques de alívio, ao finalmente conseguir sentar, para quem era rápido o suficiente, claro.
Entretanto, nas longas esperas de 40 ou 50 minutos de quando eu perdia o trem pra casa, eu me perdia em mim e nas divagações de como aquilo tudo era 50 anos antes ou mesmo em tempos mais antigos. A Estação foi fundada ainda no Império, em 1880. São 140 anos de histórias passadas naqueles assoalhos vermelhos, que devem ter tido outras cores e desenhos, claro.
Embalada pela MPB das tardes da Rádio Tempo, que era transmitida pelos autofalantes da velha estação, eu percebia que estava sim na atualidade. Mas, bastava olhar ao redor para me transportar para os tempos em que a velha estação recebia os trens do interior. A inspiração vinha ligeira em alguns fins de tarde, bastava olhar ao redor, no rumo de casa ou mesmo para os galpões desativados. Quantos encontros e desencontros aquela estação teria presenciado? E despedidas? Foi por lá que milhares retirantes chegavam nos anos de seca para os Campos de Trabalho. Uma tristeza ter lido isso.
Ao iniciar minha trajetória como repórter, uma das minhas primeiras matérias assinadas foi sobre esse trajeto longo, cheio de personagens pitorescos, entre a Vila das Flores, em Maracanaú e Caucaia, com a Estação João Felipe no centro do percurso. Isso faz mais de 15 anos, mas lembro bem de ficar atenta igual a menino pequeno, olhando pela janela para apreciar cada detalhe das paisagens nunca vistas antes para aqueles lados da cidade. Afinal, eu só conhecia do Centro para Caucaia. Nunca tinha ido para o outro extremo da linha. O fotógrafo que me acompanhou, o Tuno Vieira, muito experiente, registrou tudo e chegou, bem enfadado como eu na redação em pleno sábado, depois de uma manhã inteira andando de trem. O trajeto completo demorava mais de duas horas. Imagine o tempo que seria gasto de ônibus, com tantos engarrafamentos pela cidade?
No sacolejar do trem nessa década de uso, me rendeu muitas leituras. Até hoje, não entendo o porquê da velocidade maior da leitura e menos enjoo ao ler nesse ambiente tão barulhento. Só interrompi minhas viagens ferroviárias ao ser finalmente atingida por uma pedrada, nos anos 2000. Os trens já tinham vagões mais novos, a administração era do Metrofor, mas as portas abertas continuavam permitindo esse tipo de acidente. O impacto da pedra foi na minha aliança, que ficou marcada e o meu dedo anelar, ferido. Isso protegeu minha filha mais velha, de dois anos, que viajava comigo. Livramento que até hoje agradeço a Deus.
Depois que a estação mudou para o espaço vizinho ao Cemitério São João Batista, perdi ainda mais o gosto pelo transporte. Desde esse tempo, estou de luto pelo fim da minha estação. Tem uns seis anos que iniciaram essa obra, que transformará o prédio centenário em um importante equipamento cultural, com museu, biblioteca, pinacoteca e muitas outras novidades, se integrando até mesmo com os prédios do Panorama Artesanal, de onde avistei o meu primeiro Pôr-do-Sol no mar, em 1996. Não creio que uma obra tão grandiosa fique pronta tão cedo. A certeza que eu tenho é que a Estação João Felipe virou mais um trecho das Cidades Invisiveis. Isso porque por mais que a restaurem, nunca mais o trem chegará apitando por lá, nem se descerá por aquelas rampas ou compraremos seus bilhetes. Passou essa era.