Nos palcos e nos estúdios, Raimundo Fagner teve uma constelação de parceiros. Uma história dos cinquenta anos da música brasileira poderia ser contada a partir dessas trocas, com um desfile de estrelas de primeira grandeza do nosso cancioneiro. Às vésperas de lançar um novo álbum de inéditas, Fagner perdeu um grande parceiro: o multi-instrumentista Cristiano Pinho.
Por quase três décadas, Cristiano Pinho foi um escudeiro para Fagner. Acompanhou o artista em discos, turnês, shows especiais e nas performances domésticas, quando os amigos cantavam e tocavam suas favoritas. “O Cris vinha sendo, nesses 30 últimos anos, o cara com quem mais me conectava além do trabalho”, conta Fagner, em entrevista ao OPINIÃO CE. “E ele caiu como uma luva na banda da época”, relembra, retornando ao início da parceria.
Em meados dos anos 1990, Fagner decidiu passar mais tempo no Ceará. “Conheci o Cris no palco do TJA, participando de um show com a Kátia Freitas [a cantora e compositora era companheira do guitarrista] e alguns outros artistas da terra. Me impressionei com ele, tivemos uma empatia de pessoa e uma afinidade musical grande”, conta o amigo.

Fagner é um artista exigente, com a excelência técnica dos músicos, com a qualidade do som, tanto gravando como tocando ao vivo. Cristiano tinha um entendimento semelhante do ofício que os unia. “Além de craque na guitarra, ele tinha exigência de qualidade de som no que fizesse. E era respeitadíssimo no meio, o que é importante para um músico”, explica.
“ALEGROU ESTE MUNDO ONDE HÁ TANTA TRISTEZA”
Pouco depois que os portais noticiavam a morte de Cristiano Pinho, Fagner escreveu sobre a perda do amigo nas redes sociais: “O Cris se foi. E com ele se vai uma parte do meu som”. No dia seguinte à partida do guitarrista, o cantor de “Mucuripe” acordou sentindo um vazio. Sabia que outros que trabalharam e amaram Pinho sentiam o mesmo.
“Rancho Das Flores”, um poema de Vinícius de Moraes, musicado por Cristiano e gravado por Fagner há alguns anos, foi uma das últimas músicas que tocaram juntos, fora dos palcos, como costumavam fazer quando se encontravam. “Entre as prendas com que a natureza/ Alegrou este mundo onde há tanta tristeza/ A beleza das flores realça em primeiro lugar”, cantaram os primeiros versos. “É uma imagem que vai ficar”, rememora Fagner.
A despedida ficou marcada pelo último áudio trocado e os papos finais. “A última imagem que ficou foi dele, no camarim, comigo, em Barbalha”, conta o artista, que acompanhou de perto a batalha de Cristiano Pinho contra um câncer. “Ele amava o palco. Com os músicos, acontece constantemente de você se sentir mais forte no palco. Eu sinto isso. Às vezes, você está inseguro, mas no palco não sente isso. É maravilhoso. Foi o que segurou o Cristiano. Estava sempre priorizando o trabalho. Mas chegou um momento em que falei para ele: ‘não, cara. Agora você vai cuidar da saúde!’. Mas ele veio até onde podia”, detalha Fagner.

Olhando a trajetória do amigo, Fagner é categórico ao dizer que Cristiano deixou uma obra realizada, sem faltar nada. “O Robertinho do Recife, com quem toquei e gravei muito, reverenciou o Cristiano. Ele foi endeusado por tudo que é músico, por onde passamos. O Robertinho tem história, som, timbre. Tudo isso aparece nas canções que gravamos. E o Cris tinha a capacidade de tocar essas músicas e fazer o dele, ter sua própria marca. No dia que ele se foi, era gente falando dele em todo canto. Ele merecia. É um grande artista”, avalia, trocando os tempos do verbo, relutando de falar do amigo no passado.
A PERMANÊNCIA DA ARTE
A história de Fagner e Cristiano Pinho ainda não terminou. Seguirá viva nas gravações que partilharam, na memória de quem viu dos dois juntos no palco e ainda se fará ouvir em canções inéditas. O guitarrista aparecerá em pelo menos duas músicas do novo álbum de Fagner. “Além desse futuro” será lançado em agosto. Foi gravado em comemoração aos 50 anos do disco de estreia do cantor e compositor, “Manera Fru Fru Manera ou O Último Pau de Arara” (1973). O trabalho é quase todo formado de composições em parceria com Fausto Nilo.
Uma das novas canções, assinadas por Cristiano com Fagner, não chegou a ter um nome definido pelos dois. “Tínhamos pensado em chamar de ‘Dois rios'”, conta. O guitarrista navegou por outras águas.
As velas do Mucuripe saíram para pescar, levaram Cristiano Pinho para um belo altar, onde encontrará o palco onde estão outros grandes músicos para lhe abraçar.